Defender a pena de morte não é defender a Vida.
Quem não defende cuidados de saúde de acesso universal às populações, independentemente do nível de rendimento, não defende a Vida.
Defender a inexistência de programas sociais que apoiem as crianças pobres não é defender a Vida.
Defender a liberalização da propriedade e do porte de armas, exigir o fácil e rápido acesso à compra de armas (sabendo-se o resultado em número de mortes das sociedades onde as armas existem com abundância e de disponibilidade de aquisição descomplicada) não é defender a Vida.
Defender a existência da indústria de armamento (no mesmo patamar moral de qualquer outra atividade) económica não é defender a Vida.
Vender armas para países em guerra não é defender a Vida.
Promover conflitos armados, ou apoiar quem os gera, não é defender a Vida.
Defender a pobreza feminina (e das crianças a cargo das mulheres), através da promoção do status quo que remunera menos o trabalho feminino e a permanência das mulheres nos escalões mais baixos da pirâmide do mercado laboral, não é defender a Vida.
Desconsiderar, ou mesmo atacar e apelidá-las de mentirosas, as vítimas de violência sexual e de violência doméstica não é defender a Vida.
Manter por todos os meios os constrangimentos legais e jurídicos que impedem a perseguição e condenação de violadores não é defender a Vida.
Apoiar regimes e países que atropelam os direitos humanos dos seus cidadãos não é defender a Vida.
Defender o encarceramento massivo de cidadãos (como nos Estados Unidos) não é defender a Vida.
Defender a inexistência de educação sexual obrigatória com informação que impeça gravidezes – e, sim, diminua o número de gravidezes indesejadas e abortos – não é defender a Vida.
Defender os constrangimentos no acesso a contracetivos – sendo que a contraceção, novamente, diminui largamente gravidezes indesejadas e possíveis abortos -, que a administração Trump e os republicanos têm tentado ufanamente implementar, não é defender a Vida.
Defender que a vida de uma mulher não vale nada, defender que uma mulher é uma coisa com fins reprodutores sem a dignidade que merecem os seres humanos, como fazem as criaturas horripilantes que nem em situações de risco para a vida e saúde da mãe contemplam o aborto, não é defender a Vida.
Defender que uma mulher que foi violada deve ser ainda mais destruída – na verdade morta, mesmo que continue a respirar – contendo dentro do útero o rebento da violação durante a gravidez e parindo o filho de quem a violou, não é de certeza defender a Vida.
É tempo de assumirmos que o que está em causa nas recentes ignomínias legislativas no Alabama, no Texas e com tentativas noutros lados, promovidas pelo inevitavelmente errado Trump, não tem nada a ver com defesa da Vida. Tem a ver com ódio às mulheres, ataque às mulheres e, sobretudo, um ataque visceral à liberdade sexual e reprodutiva das mulheres. Porque quem defende um, ou vários, dos pontos dos parágrafos acima com toda a certeza não defende a vida, com ou sem V maiúsculo. E não tem moral absolutamente nenhuma para falar dos malefícios do aborto.
O aborto nos Estados Unidos é um pavor, com abortos feitos demasiado tarde em estados muito avançados da gravidez. Mas a selvajaria de um lado não desculpa a selvajaria do lado contrário.
O que de resto é visível na forma como colocam todo o ónus do aborto nas mulheres. Ah, são as mulheres que têm a obrigação de estarem à altura das consequências dos comportamentos que livremente tiveram. Mas os homens não têm de estar à altura de não terem cuidado de usar preservativo para impedir uma gravidez. Claro que não. Era o que faltava exigirmos aos homens que sejam responsáveis pelos seus atos. Ora, os homens não são mulheres, os homens são seres que merecem respeito.
Em Portugal, quando se discutiu a despenalização do aborto em 2007, várias pessoas (incluindo o atual Presidente da República e muitos outros católicos) propuseram um meio termo: simplesmente retirava-se do código penal o crime de aborto. Era uma proposta estranha (não tinha limite de semanas, por exemplo), mas era compassiva: percebia que a maioria das mulheres não aborta por motivos levianos e que, mesmo considerando o aborto um mal, a sociedade afirmava que não quereria acusar e penalizar a mulher. Esta posição de vários católicos portugueses está a anos-luz do que atualmente se passa na diabolização de mulheres dos que se dizem cristãos, como se vê nas penas pesadas que se querem aplicar às grávidas que abortam.
A transformação em animais parideiros é de tal ordem que nos Estados Unidos ganha volume, nos círculos alucinados, o argumento de que os homens que fornecem o esperma para uma gravidez não desejada devem ter a sua vontade levada em conta – isto vindo de pessoas que consideram que a vontade das mulheres é irrelevante. Então: tem sexo com uma mulher e ganha poder sobre o corpo dela caso resulte gravidez. O que se passa com o corpo de uma mulher não é decidido por ela mas pelo homem com quem calhou ter sexo. Como se pode conviver com pessoas que defendem esta escravatura de mulheres? Preocupam-se com possíveis filhos? Bom, contratualizem esta eventualidade antes de terem sexo (ah, e boa sorte para o sexo eventual a seguir à conversa ‘não vou usar preservativo mas vou obrigar-te a ter o rebento se engravidares’). Ou, melhor, usem preservativo ou façam uma vasectomia.
Conheço várias mulheres que abortaram, algumas delas são minhas amigas e de quem gosto muito. Não há uma única que não seja moralmente superior a esta gente com ódio às mulheres que diz que ‘defende a vida’.