Machismo sob o Sol (o jornal)

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Imagem de Diogo Cavaleiro.

Há umas semanas houve clamor geral por causa dos programas de televisão que promoviam uma visão rematadamente sexista das relações entre homens e mulheres. Talvez devamos dar ignição a novo repúdio geral – ou mais pequeno, afinal trata-se de um jornal de muito pequena circulação – pela maneira como uma mulher profissional é retratada no jornal Sol.

É ler a fotografia, que apanhei no twitter do jornalista do Expresso Diogo Cavaleiro. O jornal criado por José António Saraiva – que já escreveu os maiores vómitos da comunicação social portuguesa (e se tem concorrentes), de um machismo ressabiado que já está no nível patológico, que me recuso a linkar – quis fazer um conto moral.

Reza assim: as mulheres é bom que não tenham ambição profissional nem que prejudiquem a vida do marido por causa das oportunidades profissionais que lhes surgem, ou acabam sem nada, nem marido nem profissão.

Hã? Catita, não é? A cabra ambiciosa mudou-se para Lisboa por causa do trabalho, deixou o marido sozinho no Porto (coitado, ficou ninguém para dar as instruções à empregada doméstica – é o tom do Sol que interpreto livremente mas fielmente) e agora, bem feito, ficou sem marido e sem emprego. É para as mulheres aprenderem: nada de andar à cata de oportunidades profissionais que desestabilizem a família, ou apanham do universo. Beware.

Claro que o casamento de Maria Cerqueira Gomes pode ter terminado por razões que nada têm a ver com a mudança. Não sabemos e não interessa a ninguém, exceto aos abutres que gostam de comentar os eventos menos bons da vida alheia.

Interessa, e muito, como se representam as mulheres nos media. Porque isso faz mudar as atitudes e mentalidades, pouco a pouco – ou, pelo contrário, contribui para as manter e cristalizar e impedir a mudança. Neste caso, quis-se representar a ambição profissional feminina como algo que é punido, e ainda bem que é para as ambiciosas não ganharem catarro. Quis-se avisar as mulheres que sonham e aproveitam oportunidades que haveria castigo. Quis-se afirmar que o lugar das mulheres não é correrem atrás da profissão, é ficarem onde está o marido (note-se que não houve nenhum estado de alma por o marido não ter acompanhado a mulher para a cidade onde tem o novo desafio profissional, algo que seria perfeitamente esperado se se tratasse da mudança do marido). Quis-se reforçar que o mais importante para as mulheres deve ser o marido e, havendo conflito, se tem sempre de escolher o marido (mesmo – e não faço ideia se foi o caso, nem interessa, refiro-me apenas apenas à moral do texto do Sol – se o marido for rezingão e não aceitar o crescimento profissional da mulher, não aceitar uma mudança que trará vantagens à sua mulher, ou o casamento estiver no estertor final).

Mais uma vez, usar o poder como consumidor@s e a censura social é o melhor caminho. Não vale muito a pena recomendar que não se compre um jornal que reproduz estas mensagens machistas, porque em boa verdade quase ninguém o compra. Em todo o caso, em discordando destas narrativas sexistas e querendo afirmar a discordância, é não partilharem os links do Sol, não darem page views aos seus colunistas (a não ser que se demarquem disto), manifestarem a opinião sobre este tipo de conteúdos. Porque, como dizia Agatha Christie, há mal sob o sol.

 

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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