De todas as áreas em que as mulheres são minoria, talvez a música seja uma das mais chocantes. Representa o descaso para com as mulheres, tanto na arte, como no espaço público. É silêncio ensurdecedor de mais de metade da população. É, ainda, produto da diferente educação que damos a rapazes e raparigas: aos primeiros é suscitada a curiosidade, não só, mas também musical. Para elas, desde cedo, o mundo da música está ou reservado a breves experimentações de infância ou simplesmente arredado das suas escolhas, actividades e objectivos.
Cantar, tocar instrumentos musicais, produzir música não deveria ter género, mas transformou-se num boys club em que mulher só entra excepcionalmente, quando e na medida em que corresponde a alguma expectativa estética/musical que agrade ao “público”, também ele idealizado; correspondente ao perfil do “consumidor” e/ou “entendedor” e nunca da consumidora, muito menos da entendedora.
Estas conclusões não são empíricas. Têm como base todo e qualquer estudo sério acerca da (des)igualdade de género na música.
Esperávamos mudança. Não está a acontecer. Na verdade, o cenário só tem vindo a piorar. De acordo com o estudo da USC Annenberg – Escola de Comunicação e Jornalismo, o ano de 2017 é o sexto ano consecutivo de queda da percentagem de mulheres artistas nos Estados Unidos. Em 2018, apesar da onda de indignação, nada mais que uma subida residual. A ONG Women in Music, apostada em mudar este cenário, apresenta mais dados preocupantes: mundialmente, a percentagem de mulheres na música ronda os 30%. Nos Estados Unidos e Canadá apenas 6% dos produtores musicais são mulheres. Apenas 7% de mulheres estão presentes directa ou indirectamente nos departamentos de vendas e desenvolvimento de negócios. No Reino Unido, 50% das mulheres em regime de freelance ganha menos de 10.000 Libras/ano.
Em Portugal, o descaso. Vale a pena ler o resumo do estudo encomendado pela Sociedade Portuguesa de Autores. Entre conversas sobre precariedade e a considerações várias acerca do perfil do “autor”, uma passageira referência às mulheres. Aquela pedra no sapato, o pormenor em jeito de rodapé:
“(…) há uma grande assimetria entre o número de autoras e autores”.
No geral, os homens são seis vezes mais do que as mulheres”
Em duas frases, o assunto está despachado. Mais à frente ainda se acrescenta que:
“As inscrições na SPA evidenciam ainda uma enorme assimetria entre a entrada de homens e de mulheres, em particular, na indústria musical, em que os homens são cerca de 20 vezes mais”.
Vinte.Vezes!
Nada se faz, ninguém demonstra preocupação. O números são resumidos ao ponto do ridículo. Não são abordadas eventuais acções e/ou propostas que visem diminuir esta desigualdade escandalosa.
Enquanto não nos indignarmos com o diminuto e subserviente papel das mulheres na arte em geral, continuaremos a perpetuar uma visão do mundo desequilibrada. No caso da música, continuaremos a ter um país que canta a uma só voz: uma voz masculina, branca, privilegiada, acampada nas grandes cidades, particularmente em Lisboa. Ora, sem diversidade, a função da arte não se cumpre. Sem diversidade musical as mentalidades não se mudam, o status quo é perpetuado e o valor fundamental da representatividade é continuamente ignorado. Um país sem identidade musical é um país sem luz, sem escape, sem graça.
Mas nem tudo são más notícias. Na falta de referências portuguesas, teremos, nos festivais de 2019, artistas fabulosas, de todos os géneros musicais, que nos poderão inspirar. Para que todos, mulheres e homens, passemos a ouvir mais artistas – portuguesas e estrangeiras – que celebrem as experiências, mundividências e sonoridades no feminino.
O que escolher, então, no mar de confirmações, festivais, cartazes e nomes que anunciam um verão de hiperactividade musical? Deixo-vos alguns nomes:
NOS Primavera Sound
Solange – Quando pensamos em Solange Knowles lembramo-nos sempre da irmã Beyoncé. Seria um erro categorizar Solange como a segunda irmã Knowles. Na verdade, Solange Knowles é a irmã original. Verdadeiramente rebelde e experimental, Solange brinca com as sonoridades com destreza tipíca de irmã-caçula. Rejeita, mas não desrespeita o sucesso da irmã. Move-se, esguia, entre o Jazz, o Soul e a Electrónica e o Hip Hop. Solange é sinónimo de liberdade: nunca obediente, sempre disruptiva e surpreendente. Esteticamente sofisticada e dona de uma voz inconfundível. Adivinha-se um concerto memorável no Parque da Cidade.
Rosalía – O Flamenco nunca mais será o mesmo. Um estilo conservador e predominantemente masculino foi abalroado por uma catalã-furacão e sujeito ao mix de estilos musicais que Rosalía transporta e transborda. Já tivemos Bebe e as irmãs Flores. Agora temos Rosalía, que é tudo isto, mas profundamente moderna, profundamente eclética, orgulhosamente gitana. E uma performer com a garra que podem ver aqui:
Mais nomes no Primavera Sound provam que as mulheres podem ser o que quiserem: Nina Kraviz, DJ de sucesso num mundo de homens, Erykah Badu com uma carreira de décadas e o estilo de sempre. E esta cantora, que está nas letras pequeninas do cartaz, mas que, aos 23 anos é já uma voz promissora do indie rock. Lucy Dacus é presente e futuro do novíssimo, mais eclético e mais feminista panorama musical americano.
NOS Alive.
Robyn – A Suécia não nos deu só os ABBA e o IKEA. Caríssima geração 90/00, estamos em festa! Robyn, sueca, dona de várias vidas musicais, vem ao nosso país apresentar um álbum viciante, deliciosamente dançável, como só Robyn sabe fazer. Lançado no ano passado, Honey é já aclamado pela crítica. Nele, encontramos uma versão de Dancing On My Own capaz de viciar até as almas mais intelectualizadas da blogosfera.
Sharon Van Etten – Para que este seja um artigo para todos os gostos musicais, é imprescindível escrever sobre Sharon Van Etten. Rebelde, com feições que lembram Patti Smith, o estilo francês rockstar Saint Laurent e a emoção desgarrada do rock americano, Sharon Van Etten tem vibe Twin Peaks, é musa de David Lynch e dona de uma voz poderosa, arranhada, sofrida. Tudo é vivido de acordo com uma intensidade já tão rara nos dias que correm. Todo o perfeccionismo é maravilhosamente esquecido. A sua performance promete ser inesquecível.
Jorja Smith – Cool, calm and collected. Jorja Smith começou agora, mas desde cedo sabemos que nasceu para isto. Uma das melhores vozes da actualidade, a inglesa é exemplo máximo da vitória da diversidade sobre o panorama musical britânico. Imperdível.
Na próxima semana escolherei mais seis artistas que irão marcar presença nos dois outros festivais maiores do nosso país; Super Bock Super Rock e Paredes de Coura.
Até lá, boas músicas e uma boa semana!