Era segunda-feira, dia 15 deste mês de Abril do ano 2019. Mas também podia ter sido aquela terça-feira, dia 11 de Setembro do ano 2001. Novamente estivémos todos colados às televisões e aos telemóveis a ver, um pouco por todo o mundo, um desastre em frente aos nossos olhos. Primeiro que havia um incêndio em Notre-Dame. Segundo, que o incêndio lavrava já por todo o teto da catedral. Depois, o momento de horror seminal: o pínaculo da torre central, todo incendiado, ruíu por completo (tal como naquele 11 de Setembro quando a primeira torre caíu, aquelas vozes profundas de incredulidade misturada com o terror apocalíptico). Seguiu-se o receio de que ambas as torres caíssem. A tristeza, a procura de razões, o vazio, a promessa de restauração posterior. Testemunhámos tudo isso esta semana com o triste incêndio da Notre-Dame de Paris, Notre-Dame do mundo. Uma parte de nós e do Ocidente morreu ali.
Para já o que se sabe sobre como este desastre aconteceu é escasso, o que aliás tende a acontecer em todos os desatres, tanto em França como pelo mundo fora. A Diocese Católica de Paris queixava-se há anos que os dois milhões de euros anuais que o Ministério da Cultura francesa fornecia para a manutenção de Notre-Dame eram insuficientes sobretudo quando o mesmo Estado francês proíbe a Igreja de aumentar os preços das visitas às catedrais desde 1986. Para manter a catedral o clero francês eventualmente teve de lançar em 2017 uma iniciativa de angariação de fundos privados por todo o mundo. Séculos de poluição e de chuva tinham gasto profundamente a pedra original, pedaços do teto caíam todos os meses, as gárgulas irreconhecíveis, havia paredes interiores mantidas com suportes de madeira precários e áreas de acesso proíbido ao público consideradas em situação “extraordinariamente preocupante”. Sabe-se agora que Notre-Dame nem sequer estava coberta por um simples seguro patrimonial. A Câmara de Paris, por seu lado, preferia gastar orçamento num esquema milionário de bicicletas públicas e na criação de praias urbanas no Sena. O habitual urbanismo de fachada que domina tantas capitais hoje em dia, de Lisboa a Londres, de Nova Iorque a Tóquio, o importante é ser hip e trendy, o coração antigo das cidades que se lixe.
Como cereja no topo do probema, a sociedade e o Estado francês encaravam o acto de doar dinheiro para um edíficio religioso (mesmo sendo Notre-Dame a maior atração turística de Paris) como algo “não-laico” e “não-republicano” (a maior parte das doações privadas até esta segunda-feira tinha vindo curiosamente de mecenas americanos que não sofrem dessas hipocrisias). Tudo isto foi coberto extensivamente nos jornais, revistas e televisões francesas durante anos (há apenas um mês o Arcebispo de Paris disse que a renovação iniciada era insuficiente e que a catedral corria o risco de ruír) até que, ironia das ironias, meses apenas depois de, finalmente, começar uma operação de restauro na catedral, a tragédia aconteceu. A mesma sequência de eventos aconteceu já vezes demais noutros edifícios históricos pelo mundo fora: em Windsor o grande incêndio de 1992, o Museu Nacional no Rio de Janeiro em 2018, e mais, muitos mais casos. Não se espantem de um dia virem os Jerónimos, a catedral de São Marcos ou o Alhambra nesta lista deprimente. Está mais do que na altura para se começar a fazer um inquérito sério à forma como a manutenção e renovação de espaços públicos históricos é feita.
Uma ou duas coisas correram menos mal neste desastre, se se pode usar essa expressão. Por um período de meia hora na segunda-feira fatídica receou-se que toda a Notre-Dame estivesse perdida. Felizmente não foi o caso: a estrutura principal do edíficio sobreviveu graças, em largo modo, à inteligência da arquitectura medieval ao separar o teto principal do interior da catedral através de longas abóbadas (uma das marcas fundamentais do estilo gótico). Os maravilhosos vitrais interiores datados do século XIII (uma verdadeira viagem por todos as cores do espectro da luz) também sobreviveram. Relíquias e objectos religiosos de valor incálculavel como a coroa de espinhos da crucifixação de Cristo, a estátua da Virgem de Paris, o orgão do século XVIII, os sinos que marcaram tantas ocasiões históricas para a França e para a Europa, também foram salvos. Ainda não se sabe, no entanto, o estado exacto de muitos dos quadros de valor incálculavel que estavam dentro da catedral, uma coleção de arte que vai desde os fins do século XII até ao século XIX. De uma forma irónica esta tragédia pode ter sido a catalizadora para a restauração de que Notre-Dame já vinha a precisar há mais de trinta anos: de repente todos os milionários-chave franceses (desde os Arnault, aos Pinault, aos Rothschilds) já se comprometeram a doar vastas somas de dinheiro (a conta já excedeu o mil milhão de euros) para a reconstrução da catedral. O que antes era um assunto “não-laico”, agora perante a tragédia já é uma “prioridade nacional”. A hipocrisia de uma certa camada da sociedade francesa continua de saúde vigorosa.
O leitor mais céptico ou profundamente ateísta (que aliás este cronista tambem é, note-se) pode perguntar: tudo bem mas é Notre-Dame mesmo tão importante assim? Não há tantas catedrais em França? Não há maravilhas idênticas em Chartres, Amiens, Reims? Há sim, só que nenhuma delas chega ao significado e ao lugar central que Notre-Dame tem não só na História de França, mas na História do Ocidente. Mesmo antes de terminada, a obra em construção já atraía cavaleiros medievais que, durante as Cruzadas, íam ao local rezar e pedir proteção antes de partir para o Oriente. Notre Dame foi várias vezes palco da eterna valsa de aproximação e distanciamento entre o Reino Unido e a França como poderes rivais europeus, através de casamentos reais: foi lá que Henrique VI de Inglaterra foi coroado como rei de França dois anos depois da sua coroação na Abadia de Westminster em 1429. Foi também ali que Jaime V da Escócia se casou com Madeleine de Valois em 1537 e Mary, Raínha da Escócia com Dauphin Francis in 1558 (com todos os problemas que se seguiram). A mãe de Joana D’Arc prostou-se naquele altar pedindo perdão para a filha.
Durante a Revolução Francesa, a catedral foi pilhada, e uma torre do século treze foi desmantelada.Também foram destruídas vinte e oito estátuas da galeria dos reis e de todas as grandes esculturas dos portais, com exceção do Virgem do Trovão, localizada no entrada do claustro. Durante esta época, a igreja foi transformada num tempo do Culto à Razão, uma espécie de religião da nova República e da época Iluminista. Napoleão Bonaparte escolheu Notre-Dame para ser coroado imperador da França, em 2 de dezembro de 1804, com o Papa Pio VII a liderar a cerimónia. Apartir daí Napoleão convenceu-se dos seus poderes divinos e começou em força o processo das Invasões Napoleónicas que iria ultimamente alterar o século XIX em toda a Europa.
A catedral não pertencia só à política e à Igreja. Pela mão de Victor Hugo e do romance histórico O Corcunda de Notre-Dame, publicado em 1831, foi popularizada no mundo todo com a história do tocador de sinos corcunda, o Quasimodo de tantos filmes posteriores. Curiosamente Victor Hugo já descrevia então o estado de degradação da catedral de forma premonitória. Marcel Proust, Coco Chanel, Sigmund Freud, Picasso passavam tardes inteiras lá tal era a admiração que tinham pelo edifício. Quando Paris foi libertada dos Nazis em 1944 foi lá que a cidade ocorreu para celebrar um Te Deum. Quando De Gaulle morreu foi lá que se celebrou uma missa (no fundo uma missa por aquela França da guerra e da Resistência que acabava ali com ele). O mesmo se passou com Miterrand em 1996, ou mais recentemente uma semana depois dos ataques terroristas de Paris em Novembro de 2015. Estudantes, idosos, donas de casa, turistas, tudo ocorria a Notre-Dame. Pondo simplesmente: Notre-Dame foi sempre o espaço religioso e público chave de Paris, de França e de grande parte do Ocidente na hora H. A Europa é um produto da História e da religião (seja ela católica, anglicana, protestante ou ortodoxa) e por mais que isso custe aos racionalistas, ateus e laicos estes edifícios são as pedras fundadoras da nossa civilização.
O Presidente Macron já declarou, na sua habitual forma diligente/precipitada, que Notre-Dame vai estar completamente reconstruída “em cinco anos” e que vai ser “ainda mais bela”. Tenho muitas suspeitas da primeira afirmação e duvido completamente da segunda. Uma catedral que já está mais de duas décadas para ser recuperada, a burocracia bizantina francesa para lidar com tudo (questões de património cultural não escapam) e o facto de que, mais cedo ou mais tarde, a brigada laica vai atacar de novo com os habituais argumentos (demasiado dinheiro a ser gasto numa igreja, isto e aquilo) não auguram uma reconstrução rápida. Mas sobretudo, qualquer reconstrução não pode substítuir a beleza e sobretudo as camadas de civilização da Notre-Dame original. A madeira medieval permitia um efeito que a madeira disponível contemporaneamente não permite. Grande parte da técnica artesanal usada já não existe. A subtileza arquitectónica no século XXI é frequentemente a primeira coisa a ser riscada de qualquer projecto de obra, a arquictectura moderma quer-se berrante, alta, cheia do ego do arquitecto e com pouco da alma colectiva. A arte que for considerada perdida é insubstituível. E por aí fora.
Claro que Paris não vai ficar com uma versão das Amoreiras ali em plena Île de la Cité e claro que catedrais icónicas estão sempre a ganhar novas camadas, ângulos e perspectivas. Talvez até daqui a duzentos anos andarão por ali novos grupos de estudantes a ouvir a história do incêndio que quase destruíu a catedral em 2019 e como ela renasceu das cinzas tal qual a Fenix. Mas não ponham as vossas expectativas altas demais. A Notre Dame do nosso coração ocidental está ferida demais.