Não, Notre Dame não era do clubismo cristão

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Tenho uma declaração de interesses a fazer: gosto muito de catedrais góticas. Porventura é o meu estilo arquitetónico preferido para edifícios religiosos. Sim, há barrocos fenomenais (sobretudo o italiano – quem não amar a veneziana Catedral de São Marcos é um ovo podre), mas nada compara à elegância de uma catedral gótica. Os vitrais, que inundam de luz colorida (e eu sou sempre uma pessoa muito parcial com a cor) o interior das igrejas. A altura dos pináculos e das abóbadas ogivadas. O rendilhado da pedra. Os elementos decorativos internos que nunca cometem o pecado do excesso (como no rococó) e ainda têm o encanto que a patine do tempo dá. A sensação de leveza e de etéreo.

Mas, e sou católica, também sou a informar que não é por serem edifícios religiosos que as catedrais góticas me interpelam. Quase todas as catedrais são locais profusamente turísticos, carregados de magotes de turistas, barulhentas, cheias de percursos predefinidos, muitas vezes com entrada paga. Não há experiência menos espiritual que visitar um destes sites turísticos.

Não. Gosto das catedrais góticas porque são, a maior parte das vezes, belas. E eu sou menina para gostar muito de edifícios belos. (A arquitetura é daquelas artes que gosto muito de apreciar. Já fiz muitos quilómetros de viagem para visitar certos edifícios pela qualidade arquitetónica, independentemente da história ou do que lá tinham dentro).

Por outro lado, gosto de história. E de coisas antigas. Dêem-me uma velharia, uma antiguidade, uma peça vintage e eu fico feliz. E Notre Dame era isso tudo. Um edifício com oito séculos, ligada à História de França e da Europa, que estava ali, a dar-nos a ilusão da perenidade da beleza e da resistência de certos símbolos e materiais.

Pelo que fiquei estupefacta com a discussão que se gerou nas redes sociais sobre a propriedade da perda de Notre-Dame. Que tinha sido mão jihadista. Que os católicos é que podem sofrer, ou são os que sofrem mais, com a destruição da catedral. Os ateus a guerrear que também queriam o seu pedacinho de luto. A alt right americana a cavalgar o evento. (E Trump, claro, a ser Trump.)

Notre-Dame é um símbolo europeu, e qualquer pessoa que tenha tido a sua vida ligada ao edifício – por um momento feliz que lá viveu, por exemplo – tem mais direito ao luto que eu só por ser católica. Eu sofro por ter desaparecido um edifício belo e antigo. Sofreria muito mais se algo sucedesse ao Duomo de Milão (ou, lá está, a São Marcos). Tenho a convicção que os edifícios também adquirem sabedoria com a passagem do tempo, não são só as pessoas. Os locais antigos tornam-se sagrados, pela quantidade de histórias de humanidade que acumulam. Não quero parecer new age (porque não sou), mas se há espiritualidade que atribuo aos locais é pela antiguidade e pelas lições de resistência à erosão do tempo. As pedras incas de Cuzco, no Perú, são sagradas. A destruição dos budas de Bamyian, no Afeganistão, foi também um sofrimento para mim. É mais fácil contactar com a imortalidade de Deus em qualquer um destes monumentos milenares, ou quase, ou numa paisagem da natureza ainda selvagem, que numa igreja barulhenta (de qualquer estilo arquitetónico) que tem um sacrário.

E mais confesso: não entendo para que se há de rezar perante a destruição de um edifício, por muito belo e antigo. Talvez sirva para aprendermos que as catedrais góticas não são eternas e que necessitam de constante manutenção e monitorização, desde a limpeza da poluição (que é o mais comum) às vigilâncias estruturais. Donde: não usem, nem um lado nem outro, a destruição de Notre Dame para criar clubismos religiosos, católicos contra ateus, ocidentais contra muçulmanos.

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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