Aline Rossi é ativista e foi uma das organizadoras da Greve Feminista realizada a 8 de março. Nascida no Brasil, é membro da Assembleia Feminista de Lisboa. Feminista radical, incansavelmente empenhada na divulgação do acervo teórico da luta feminista, é autora da página Feminismo com Classe, onde escreve, publica e traduz textos feministas. Escreve assiduamente noutras plataformas, como a revista digital QG Feminista e a Guilhotina.
O que é o feminismo radical, e de que forma se distingue dos outros feminismos?
O feminismo radical é o movimento de libertação das mulheres. Foi o primeiro a teorizar mulheres como uma classe na sociedade, uma classe sexual. Isto porque reconheceu o patriarcado como uma estrutura de poder que hierarquizava os sexos através do que hoje chamamos gêneros, os papeis sociais. E é precisamente nisto que ele difere de “outros feminismos”: por nomear a raiz da opressão das mulheres (o sexo e a capacidade reprodutiva), por identificar os padrões de violência e as estruturas que mantém essa opressão e a dominação (gênero, o controle da sexualidade e a violência sexual), e por apontar um caminho para erradicá-la (abolicionismo).
Quais são os principais retrocessos e ameaças aos direitos das mulheres no presente?
Apesar de falarmos em ameaças e retrocessos “no presente”, é importante perceber que gira sempre em torno da mesma coisa: o sexo e a capacidade reprodutiva. A repaginazação da pornografia e da exploração como empoderadoras, trabalho e até como “feministas”, a romantização do aluguel de úteros como “maternidade substituta”. O desmantelamento dos direitos com base no sexo para se estenderem também aqueles que sendo do sexo masculino se identifiquem como mulheres e passam, assim, a ter acesso a espaços exclusivos femininos e passam a nomear em nosso lugar. Apesar de serem novas formas de ataque, o núcleo é o mesmo. A base da nossa opressão continua sendo sexo e capacidade reprodutiva. É como já disse Beauvoir há décadas atrás: nenhum direito da mulher é permanente, estão sempre em causa, principalmente numa crise política. E nós vivemos um momento de crise política, com o avanço do fascismo em tantos lugares. O fascismo é fundamentalmente patriarcal. Não acho que todos estes pontos estejam desconectados.
O conceito de interseccionalidade tornou-se mainstream nas abordagens feministas, mas é irredutível a uma única leitura. O que significa interseccionalidade no contexto do feminismo radical?
A teoria da intersseccionalidade foi mais cooptada que popularizada, na verdade. A própria Crenshaw, teórica que cunhou o termo, já falou sobre isso. Em muito, dentro do feminismo, tem se tornado cada vez mais sobre incluir a tudo e todos do que sobre fazer análise de como as diferentes estruturas de poder se cruzam e somam – sexo, raça, classe e nação – na opressão das mulheres.
O feminismo radical criou um corpo teórico e, sobretudo, uma ferramenta para que as mulheres pudessem analisar a sua opressão nos seus respetivos contextos – o que significa reconhecer que podemos usar a “lupa” do feminismo radical, por assim dizer, para olhar para culturas diferentes e, por isso, chegar à conclusão que cada contexto requer uma articulação própria, estratégias próprias e poderão ter emergências próprias. Isto é a interseccionalidade.
Por vezes, a teoria feminista radical é acusada de vender uma “mulher universal”. Na verdade, o feminismo radical foi capaz de destrinchar estes nós de estruturas de poder e, em meio a essa rede complexa, apontar o que todas nós – em diferentes contextos – tínhamos em comum. Não como único fator de opressão, mas como fator comum. Ser mulher não é igual para uma mulher negra, uma mulher indígena, uma mulher cigana e uma mulher branca. Mas “ser mulher” é um definidor de experiências para todas nós, de diferentes maneiras, em nossas próprias culturas e contextos – e este é um ponto que temos em comum. E isto, reconhecer o ponto em comum entre todas nós, é algo poderosíssimo e essencial para unir as mulheres nas suas lutas.
Como explicas que discursos e plataformas feministas tenham cada vez mais visibilidade, ao mesmo tempo que a ideia de classe sexual parece cada vez mais disputada?
A partir do momento que reconhecemos que vivemos sob o sistema capitalista e que, neste sistema, não há luta que não seja cooptada para funcionar para a manutenção dessa estrutura, parece-me óbvio que estejamos neste “impasse”. O próprio conceito de “classe sexual” começa a perder força, teoricamente, a partir dos anos 80, com a intensificação do neoliberalismo.
O controle da capacidade reprodutiva da mulher é crucial para o funcionamento do Capitalismo, já que necessita de mão-de-obra e esta é uma “mercadoria” que apenas mulheres “produzem”. É assim que mulheres funcionam como uma classe sexual – sendo as únicas capazes de fornecer aquilo que é a obra-prima para a manutenção do capitalismo – e é também assim que interessa o esvaziamento de toda e qualquer noção de unidade entre mulheres.
A ideia de que “barriga de aluguel” é algo progressista e altruísta, por exemplo, enquanto já temos conhecimento da existência das chamadas “fazendas humanas” para barriga de aluguel; a criminalização do aborto nos países mais devastados pelas políticas neoliberais; e a universalização da mulher, uma categoria política, como uma identidade – enquanto o sexo é apagado ou tornado irrelevante – servem muito bem a esse propósito.
O entendimento do género como construção social, que subjazia à crítica dos papéis de género, parece coexistir – e crescentemente ceder lugar – aos discursos que subentendem o género como algo identitário, que preexiste às relações sociais. Como interpretas o que parece ser uma “deriva identitária”?
Foi o movimento de mulheres e a teoria feminista que apontou os estereótipos sexuais, ou “gênero”, como nocivos. Eram expectativas de papeis sociais, portanto socialmente construídos, que são impostos aos indivíduos com base no seu sexo. Uma hierarquia de e para controle social dos corpos. Agora pegamos nestes mesmos estereótipos sexuais, resultados de anos e anos de dogmas sociais patriarcais, e chamamos identidades. E dizemos que são inatos ou que se desenvolvem no útero, voltando à ideia antiquada e machista de cérebros masculinos e femininos. Isto chega ao feminismo por influência das teorias pós-modernas, em que todos sofrem opressão e ninguém oprime ao mesmo tempo, à moda de Foucault. A ideia de que gênero, uma ferramenta patriarcal para hierarquizar corpos, é uma identidade, é uma forma de culpabilizar mulheres pela sua opressão. Além de ser um desmanche do movimento feminista: faz sentido lutar contra uma imposição social sobre si, mas não faz sentido lutar contra algo que é a sua identidade, algo inato. Portanto, a luta se torna obsoleta.
Sei que discordas da lei promulgada em 2018, designada lei da autodeterminação de género. Quais as principais implicações e problemas que lhe apontas?
Essa lei é contraditória em seus próprios termos. Se por um lado fala em “proteção das características sexuais”, por outro fala em proteção à “identidade de gênero” e que esta “pressupõe a abertura de um procedimento de mudança da menção do sexo no registo civil”.
Os direitos conquistados pelas mulheres foram conquistados com base no sexo, porque a nossa discriminação sempre foi e ainda é baseada no sexo, não em como nos identificamos. Por exemplo, a porcentagem de pessoas do sexo feminino analfabetas em Portugal é quase o dobro relativamente ao sexo masculino. E isto é uma consequência história da exclusão das mulheres com base no seu sexo, não na sua identidade. O direito ao voto, aos estudos, ao trabalho, ao divórcio, foram direitos negados às mulheres com base no seu sexo e que criaram desigualdades sociais, económicas e políticas reais como consequência, e demandaram, por isso, políticas de reparação. Estas políticas são baseadas no sexo, porque a nossa exclusão foi baseada no sexo.
A lei de autodeterminação de gênero permite que qualquer pessoa do sexo masculino que se autodenomine mulher tenha acesso às políticas voltadas exclusivamente para o sexo feminino, políticas estas que são ainda necessárias. E esta abertura faz apenas aumentar a desigualdade sexual, não diminuir. Sobretudo, ela consegue mascarar estes dados de uma forma rasteira, uma vez que a autodeterminação de gênero apaga por completo o registo do sexo de nascimento da pessoa com base em não mais que a sua palavra.
Além disto, há a questão mais ampla e não menos perigosa que é o acesso aos espaços exclusivos femininos: casas de banho, vestiários, prisões. Se o gênero é autodeterminado, se é um direito de qualquer um autodeterminar o seu gênero e alterar o seu sexo, então literalmente qualquer pessoa tem acesso aos espaços exclusivos de mulheres – algo que foi também uma conquista política por questões de segurança. Uma conquista baseada no histórico e nas evidências que temos sobre os padrões de violência masculina contra mulheres. Isto vai contra o direito das mulheres de se reunirem e apoiarem com base no seu sexo, já que somos então obrigadas a acomodar qualquer pessoa do sexo oposto que se reivindique como uma mulher, ainda que a mudança seja meramente uma retificação no documento civil.
A tua posição sobre temas divisivos – como a crítica à ideia de “identidade de género”, a crítica aberta à designada lei da autodeterminação de género e a tua posição abolicionista no debate sobre prostituiçao – tem encontrado resistências. Houve episódios particularmente graves de backlash? Temeste, ou temes, repercussões a nível profissional?
Sim, já aconteceram vários episódios. O mais recente foi um jornalista brasileiro que pediu uma entrevista e distorceu completamente as minhas respostas, tirou de contexto e publicou para escrutínio público. A notícia foi partilhada em diversos grupos em que fui estampada como uma vilã contra os direitos LGBTs, com meu rosto exposto. Não é raro receber ameaças na minha caixa de entrada do Facebook ou ser exposta nas mídias sociais e equiparada a um nazi. Tenho receios relativamente a minha vida profissional, claro, especialmente quando defender os direitos das mulheres pode ser apontado como crime de discriminação de gênero. Eu não sou a primeira, nem a única e infelizmente esses casos têm sido frequentes. Não tenho medo de ficar sem emprego por lutar pelos meus direitos, meu maior receio é principalmente por ser mãe.
Qual o balanço da Greve Feminista de 2019? Quais os planos e perspetivas para a Greve Feminista de 2020?
O balanço foi bastante positivo. Foi a primeira vez em muitos anos que os diversos movimentos de mulheres – coletivos, instituições, organizações e outros – trabalharam em conjunto a nível nacional para organizar uma greve exclusivamente de mulheres. Conseguimos colocar 30000 pessoas na rua de todo o país, com 5 sindicatos a apoiar a greve. Houve alguns dedos apontados de que era uma greve simbólica, que a duração de apenas um dia era um esvaziamento político do que é uma greve de facto, mas o que é preciso perceber é que a greve feminista foi sobretudo um aprendizado. Um início, não um fim. As mulheres de diferentes perspectivas, diferentes organizações, diferentes cidades e regiões a trabalhar em conjunto para um mesmo fim é algo potencialmente revolucionário. Mostrar às mulheres do país que isto está a acontecer, que elas podem parar o país e que já há gente disposta a fazer isso foi um ponto alto. Especialmente quando se coloca em questão não apenas o trabalho formal que a greve contempla, mas o trabalho invisibilizado que as greves laborais comum escondem: o trabalho doméstico e reprodutivo, feito pelas mulheres.
As perspectivas para 2020 certamente são de ampliar este trabalho que apenas começou, aumentando o tempo de greve laboral e, quem sabe, termos uma greve unificada ibérica com as irmãs da Espanha, fortalecendo cada vez mais o caráter internacional deste movimento – numa altura em que os países levantam fronteiras.