Texto de Helena Tender e Maria João Faustino.
9 de Abril de 2005 – há 14 anos morria em Washington D.C. Andrea Dworkin, a autora feminista que ficou na história como uma das mães do feminismo radical.
A colecção dos seus papers foi adquirida pela Biblioteca da Universidade de Harvard, um presente para todas as gerações de mulheres cuja vida será para sempre mudada através das suas palavras.
Esta mudança raramente é positiva, as nossas vidas não melhoram depois de ler Andrea Dworkin. Pelo contrário. Somos obrigadas a encarar a realidade do que é nascer com o segundo sexo, entendemos finalmente o que significa ser mulher. E não gostamos. A verdade é demasiado dura. Perceber que valemos apenas pela nossa capacidade reprodutiva, que somos meros objectos sexuais, seres sub-humanos…quantas de nós estão dispostas a encarar essa realidade? Perceber quanto o patriarcado nos odeia, que o facto de o nosso corpo ser desejado e sermos tratadas com cavalheirismo não é sinal de que somos amadas, mas sim o oposto. É esta a verdade. Escondida para tantas mulheres, silenciada mesmo que intuída por tantas de nós. O que Dworkin nos fez foi gritar essa verdade aos nossos ouvidos até que, uma a uma, vamos acordando deste transe patriarcal.
Ler Andrea Dworkin é um banho de lucidez, uma viagem sem retorno. A nossa realidade é finalmente revelada e conseguimos conectar todos os pontos, em todas as facetas da nossa vida. Injustiças, discriminações, experiências negativas que dantes víamos como incidentes isolados que nos afectavam só a nós – quiçá por culpa nossa – transformam-se de repente em partes do mesmo mosaico que é a realidade de todas as mulheres neste planeta, independentemente da nossa classe social, etnia, situação financeira, carreira, nacionalidade, nível académico ou idade. Partilhamos o mesmo mosaico porque nascemos todas com o mesmo sexo – a maldição de nascer XX.
Nas suas palavras, “A genialidade de qualquer sistema esclavagista encontra-se na dinâmica que isola os escravos uns dos outros, obscurece a realidade de uma condição comum e torna inconcebível a rebelião unida contra o opressor.”
O seu primeiro livro, Woman Hating, ensinou-nos a pintar por números o quadro da nossa opressão. Começamos pela análise dos contos de fadas, que nos reprograma da lavagem cerebral a que todas fomos sujeitas na nossa infância, passamos para o GENocídio através do estudo das queimas das bruxas e da prática milenar chinesa de foot binding e terminamos na pornografia, o grande cavalo de batalha da vida de Dworkin. Ela definiu pornografia como “a destruição orquestrada dos corpos e almas das mulheres; violação, agressão, incesto e prostituição animam-na; a desumanização e o sadismo caracterizam-na; é a guerra às mulheres, ataques em série à dignidade, identidade e valor humano; é tirania. Cada mulher que sobrevive sabe por experiência que a pornografia é uma prisão – a mulher presa na imagem é usada na mulher presa onde quer que ele a tenha.”
Junto com Catherine MacKinnon, advogada ativista e ícone feminista, as duas mulheres compuseram a legislação mais avançada até hoje na libertação das mulheres – a Lei Anti-pornografia – cujo brilhantismo residiu em equiparar a luta pelos direitos civis das mulheres à luta pelos direitos civis e discriminação racial. Vários estados americanos introduziram esta legislação, mas a mesma foi por fim cancelada judicialmente, na visão (até hoje triunfante) que legitima a pornografia como liberdade de expressão. Sobre esta qualificação, Dworkin escreveu: “Os pornógrafos usam realmente os nossos corpos como linguagem. Nós somos o seu discurso. . . . Proteger o que eles ‘dizem’ significa proteger o que eles nos fazem e como fazem. Significa proteger seu sadismo sobre os nossos corpos, porque é assim que eles escrevem: não como um escritor; como um torturador.”
É esmagador pensar no que poderíamos ter feito com o legado de Andrea Dworkin. Que caminhos se abriram que não percorremos, nestas décadas. Pensar que as palavras de Dworkin sobre a pornografia se revelaram, entretanto, demasiado certeiras, e que a extensão de uma indústria milionária e estruturalmente misógina não cessa de aumentar. Que as palavras proferidas em 1975 (e posteriormente reunidas em Our Blood. Prophecies and Discourses on Sexual Politics) continuam cruelmente atuais: “A violação não é excesso, aberração, acidente, erro – ela corporaliza a sexualidade tal como a cultura a define”. Sabemo-lo cada vez mais, testemunho a testemunho: a violação não é um erro marginal da sexualidade-padrão; ela nasce e representa a própria norma da cultura.
É desolador, também, pensar que tantas de nós nos cruzamos com as palavras de Dworkin demasiado tarde – ela, tantas vezes reduzida a caricatura de um feminismo anti-sexo e moralista, mesmo que tenha conhecido a realidade crua da prostituição na própria pele.
Há, contudo, sinais de esperança. Catorze anos depois de termos perdido Dworkin, o interesse na sua obra parece renascer. Precisamos dela. Nós, que (re)começamos agora, já sabemos: todas as palavras que podem libertar as mulheres já foram escritas – e muitas delas são de Andrea Dworkin. Só falta uma coisa: libertar as mulheres.
Helena Tender / Maria João Faustino