Já passou mais de meio século desde a década de 60 do século XX e, no entanto, esse período temporal continua a conjurar imagens mais ou menos míticas. Em inglês não foram só conhecidos como os Sixties, mas os Swinging Sixties, uma onda eufórica de mini-saias, psicadelismo, submarinos amarelos, Paz e Amor, Twiggy, Blow Up, Beatles, Stones, a pílula feminina, amor livre e tudo o mais com o epicentro da King’s Road em Londres para o mundo. Uma época em que, supostamente, as mulheres se tornaram livres de escolher e fazer e onde até em Portugal uma cantora, Simone de Oliveira, levou uma canção sobre a livre escolha à Eurovisão em 1969. Em resumo: o eclodir da modernidade de forma quase revolucionária. Só que a realidade não foi bem assim nem em Portugal, nem em países mais liberais e à frente dessa vaga como a Inglaterra, a França e a Suécia.
No fantástico novo livro How Was It for You? Women, Sex, Love and Power in the 1960s, a historiadora britânica Virginia Nicholson descontroi o grande mito dos Swinging Sixties. Em vez desse festival utópico de liberdade e igualdade a década foi, na realidade, negra para as mulheres no Reino Unido e pelo mundo fora. Por exemplo, até ao Sex Discrimination Act passar no Parlamento britânico em 1975, ainda era legalmente permitido abusar, perseguir ou pagar a uma mulher diferentemente de um homem, unicamente com base no sexo. Em Portugal a situação ainda era pior: as mulheres só podiam viajar para fora de fronteiras com a explícita autorização ou do pai ou do marido. Era normal numa entrevista de trabalho perguntar a uma candidata acerca do estado marital e da sua situação familiar (um hábito que permaneceu até ao final dos anos 80). Não haviam mulheres na Finança, na Igreja, na diplomacia e muito poucas na advogacia e medicina. Depois das eleições legislativas britânicas de 1966 só 4% do Parlamento era composto por mulheres deputadas (e este era à altura o Parlamento mais igualitário do mundo). Violações, ofensas sexuais, e sobretudo a impossibilidade de dizer “não” ao homens eram moeda corrente no trabalho e na vida privada. Os anos 60 podem ter sido de free love, mas a componente free do love era apenas para os homens.
O que me leva a pensar e a investigar como estamos agora, quase no fim desta década dos 2010s (os anos 10 do novo milénio se é que essa nomenclatura temporal existe, vai ser tão mais fácil quando chegarmos a 2020, by the way) a nível de direitos e sobretudo no que diz respeito ao poder no feminino? Obviamente que as mulheres hojem gozam de um grau de liberdade e escolha impensável em 1969. No entanto, o movimento Me Too (com todos os seus excessos e defeitos) revelou muito bem que, mesmo em 2019, ainda há uma sub-corrente imensa de sexismo, abuso, objectificação que se julgava impensável. Verifiquem por exemplo o site everydaysexism.com para comprovarem como todas as instâncias de comportamentos tipo pussy-grabbing a la Donald Trump são ainda endémicas. O mesmo se reflecte, por exemplo, na pornografia heterosexual (esse último reduto do subconsciente) que nunca foi tão violenta como agora (os filmes porno dos anos 70 e 80 em comparação parecem uma versão da Música no Coração em soft glow). Será que esta luta pela igualdade do poder dos sexos é um caso permanente de um passo para a frente, dois passos para trás?
Felizmente há sinais de optimismo e de forte progresso, sobretudo onde mais importa: nos corredores do poder, dentro do sistema (por mais que desaponte os anárquicos, os sistemas ou as oligarquias mudam e destroem-se por dentro e não à margem). No passado mês de Novembro o European Women on Boards (EWoB) and Ethics & Boards publicou o primeiro European Gender Diversity Index, um estudo comparando a diversidade de género nas duzentas maiores companhias europeias, todas cotadas na Stoxx Europe 600, e representando dezanove países europeus. O estudo mede coisas concretas como a presença de mulheres em Conselhos Executivos, número de mulheres Chefe Executivas ou Chairwoman de grandes empresas e igualmente a presença de mulheres em cargos directores séniores.
A primeira boa notícia é que a representação média das mulheres nos Conselhos Executivos europeus é agora de 34%, em comparação com apenas 6% em 1990. A França lidera de longe o ranking com mais de 44% dos Conselhos Executivos preenchidos por mulheres, seguida da Itália e Alemanha, com mais de 30% (tudo países onde foram introduzidas recentemente novas leis de quotas de género nas empresas, note-se). As duas companhias com a maior proporção de mulheres no Conselho Executivo e com uma Chefe Executiva são igualmente francesas: a Kering (a holding proprietária de marcas de luxo como Gucci, Yves Saint Laurent, Alexander McQueen e a Bottega Veneta) e a Sodexo (um dos maiores conglomerados mundiais no sector alimentar e de catering), respectivamente, com mais de 50% de mulheres nestes postos centrais. Segue-se a GlaxoSmithKline, a gigante farmacêutica britânica. Há uma variedade de outros gigantes empresariais com pelo menos mais de 40% dos seus Conselhos Executivos e orgãos directores compostos por mulheres: AXA, Accor, Diageo, Total, Siemens, L’Oreal, Royal Dutch Shell, Michelin, Danone, Philips, Vodafone, Commerzbank – a nata da nata dos negócios.
É destes núcleos que emana não só a orientação estratégica destes colossos empresarias como as linhas da actividade económica de grande parte dos países europeus. Por exemplo, o grupo AXA (que tem relações históricas e priveligiadas com todas as Presidências e governos franceses) tem feito um lobby intenso nos últimos anos para o governo francês trazer mais mulheres para o mercado de trabalho (um problema crónico na Europa e no Japão é a baixa taxa de participação feminina no mercado de trabalho, sobretudo no escalão etário superior aos 50 anos). A Philips tem estado directamente envolvida com o governo holandês na elaboração de políticas de igualdade de oportunidades para mulheres (de forma transversal, desde as creches até aos centros de idosos do país). O mesmo está a ser feito pelo Commerzbank na Alemanha ou pelo HSBC no Reino Unido. Ou seja, o sector privado pode e está a trazer um extenso conhecimento e prática em como alargar a base de oportunidades para as mulheres através de todo o espectro económico (incluíndo o sector estatal, onde também há progressos mas nem sempre as melhores prácticas neste campo).
A segunda boa notícia é a evolução da presença feminina no poder político, desde o topo até às bases. Se recuarmos até 1990 a existência de líderes femininas era aquela coisa rara, quase excêntrica e digna de primeira página, um clube muito selecto que incluiu pessoas como Indira Ghandi na Índia, Benazir Bhutto no Paquistão, Golda Meir em Israel, Margaret Thatcher no Reino Unido e, embora por um período muito curto, Maria de Lurdes Pintassilgo em Portugal. É encorajador ver como se tornou mais frequente desde aos anos 90 a existência de primeiras-ministras ou Presidentes mulheres. Por exemplo, neste momento há doze países europeus com uma líder feminina, algo sem paralelo na História, incluíndo duas das três maiores economias europeias: Angela Merkel (a liderar a Alemanha, e indirectamente a Europa, há quase catorze anos) e Theresa May (a segunda primeira-ministra britânica em trinta anos).
Mas o mais interessante é ver esta ascenção feminina ao topo das cúpulas políticas em países com sociedades tradicionalmente mais conservadoras, paternalistas e fechadas, em sítios tão variados como o Bangladesh, Jamaica, Costa Rica, Brasil (a desgraçada Dilma), Tailândia, República Central Africana, Chile, Nepal, Taiwan, Singapura, Etiópia. Estes não são de todo sistemas políticos habituados à presença feminina quanto mais a primeiras-ministras e Presidentes mulheres (nos antípodas totais está a Nova Zelândia que já vai na terceira Primeira-Ministra em vinte anos apenas, com a brilhante Jacinta Ardem).
Quando se olha para a composição dos Parlamentos mundiais os sinais também são encorajadores: mais de metade dos países do mundo têm em 2019 Parlamentos em que mais de um quinto dos deputados são mulheres e, mais uma vez, não são só os países desenvolvidos a dominar este movimento. Por exemplo, os três Parlamentos mundiais onde as mulheres têm maior representação são o Ruanda, Cuba e Bolívia, todos com mais de 50% da sua composição pertencendo a deputadas. No top dez desta lista estão casos clássicos do progressismo ou liberalism social como a Suécia, mas, também países que ainda há menos de trinta anos estavam em estado de ditadura, guerra civil ou repressão social como a África do Sul, Namíbia e Nicarágua. Portugal surge a par com a Itália, em trigésimo lugar e à frente de países como a Holanda, Reino Unido, Alemanha e Canadá. É de salientar a posição muito pobre dos Estados Unidos da América que só alcançam a septuagésima oitava posição nesta lista, abaixo dos Parlamentos da China, Arménia, Cabo Verde e Iraque, só para nomear alguns. A falta de sucesso na corrida à Presidência de Hillary Clinton foi só a ponta do iceberg de uma democracia norte-americana que ainda é maioritariamente masculina, branca e substancialmente misógena. O mesmo aliás se passa na economia norte-americana, onde só 5% das companhias do Fortune 500 têm uma mulher como chefe executiva, o que é chocante na comparação com a situação na Europa e na Ásia, por exemplo. Mas, na vasta maioria do planeta o ser mulher deixou de ser um handicap a uma carreira parlamentar de vulto.
Há igualmente uma verdadeira explosão mundial de associações de defesa e promoção activa não só dos direitos femininos mas de tópicos que verdadeiramente interessam às mulheres e que podem ser tao díspares como a prevenção da transmissão do HIV de mãe para criança no Ruanda até à promoção do trabalho part-time e de creches na Holanda. Só desde 2010 até agora, mais de oito mil associações deste tipo foram registadas em todo o mundo. Mais uma vez o crescimento deste associativismo feminino tem sido mais impressionante em países tradicionalmente desfavorecidos, particularmente em África. É assim que num país tradicionalmente dominado por homens como a Nigéria (um dos países mais populosos e jovens do século XXI) as duas maiores associações de direitos femininos nacionais, respectivamente a WIMBIZ e a Delta Women, aparecem num espaço de apenas seis anos. O mesmo se aplica na Índia, onde já existem mais de trezentas organizações nacionais deste tipo, com milhões de membros.
Claro que ainda há muito para fazer. Por exemplo, segundo as Nações Unidas, mais de 2.7 mil milhões de mulheres ainda são legalmente proíbidas de escolher os mesmos empregos que os homens. 59 países ainda não têm quaisquer leis no que diz respeito ao assédio no mercado de trabalho e em 18 nações os maridos ainda podem proíbir as suas esposas de trabalhar ou sequer de viajar. As mulheres ainda têm maior probabilidade de ficarem desempregadas do que os homens e mais de o dobro da probabilidade de terem um trabalho precário. Globalmente as mulheres ainda só ganham 77% do que um homem ganha mesmo desempenhando um emprego idêntico, com exactamente as mesmas qualificações e percurso de carreira. Todos estes horrores permanecem.
Se as mulheres conseguirem realizar o seu potencial os benefícios para o total das sociedades (incluindo os homens) será imenso. Por exemplo, se os países da OCDE tivessem uma taxa de emprego feminina equivalente à da Suécia (a mais alta no mundo desenvolvido), isso representaria imediatamente um crescimento económico adicional de seis triliões de dólares. Companhias com taxas de emprego e de liderança feminina altas têm em média, segundo a Boston Consulting Group, uma performance organizacional e produtividade 25% maior do que companhias com taxas baixas de participação feminina. Adicionalmente num quadro em que a maior parte dos países avançados (e já nalguns emergentes como o Brasil e a China) se confrontam com uma população cada vez mais idosa e uma força laboral em contracção, aumentar a taxa de participação feminina no mercado de trabalho vai ser a chave para manter o crescimento económico e os níveis de vida na sociedade em geral. Há vários exemplos de países que estão a perceber esta realidade e a adaptar as suas políticas a ela: por exemplo, no Chile (que é a economia sul-americana com melhor performance a nível de crescimento do rendimento per capita) o programa Jornada Escolar Completa ao aumentar o tempo que as crianças passam nas escolas (investindo em facilidades desportivas e artísticas para os estudantes) levou a um aumento da taxa de emprego feminina em 15% em apenas dez anos.
Os anos 60 do século passado foram o suposto Santo Gral do feminismo. Mas o que se passou nesta década (entre todos os choques que nunca esperávamos como os Kevin Spaceys desta vida ou o ter ao leme da democracia mais poderosa do mundo um chauvinista) é um movimento global incomparavelmente mais positivo e real em direcção ao potencial total das mulheres do que os Sixties foram. Esperemos que continue e que não se dêm, mais uma vez, dois passos atrás como os caranguejos.