Rita Carreira | ‘Não pode valer tudo’

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Imagem de Isabel Santiago

Em 1982, Portugal teve a sua primeira mulher ministra, na figura de Maria de Lurdes Pintassilgo, que ocupou o cargo de Primeira Ministra de 1 de Agosto de 1979 a 3 de Janeiro de 1980, num governo de iniciativa presidencial em que ela era independente. Depois disso, Leonor Beleza foi nomeada ministra da Saúde no primeiro governo de Cavaco Silva, em Novembro de 1985, sendo a única mulher desse governo e talvez uma das figuras políticas mais polarizadoras de então.

Não parece que a sua presença tenha penalizado o PSD, pois nas eleições legislativas de 1987, Cavaco Silva não só obteve a primeira maioria, como conseguiu que o seu governo fosse o primeiro a completar um mandato durante a Terceira República; no entanto, Leonor Beleza saiu no início de 1990, altura em que, para a pasta das Finanças, entrou o seu irmão Miguel Beleza, ou seja, os dois não foram ministros ao mesmo tempo.

Durante o terceiro e último governo de Cavaco Silva (1991-1995), que inicialmente apenas incluiu homens, duas mulheres entraram a meio: em Junho de 1993, Teresa Gouveia para a pasta do Ambiente e Recursos Naturais e em Dezembro desse mesmo ano, Manuela Ferreira Leite para a pasta da Educação.

O primeiro governo de António Guterres (1995-1999) contou com três mulheres: Maria de Belém Roseira (Saúde), Maria João Rodrigues (Qualificação e Emprego), e Elisa Ferreira (Ambiente). No entanto, o número de pastas ministeriais aumentou para 25, contra as 21 aquando da saída de Cavaco Silva, o que implica que o peso de cada mulher no governo diminuiu, mas como mencionei antes, o terceiro governo de Cavaco Silva tinha começado sem mulheres.

O segundo governo de António Guterres (1999-2002) teve menos pastas ministeriais e, apesar de começar com três mulheres (Elisa Ferreira, Manuela Arcanjo, e Maria de Belém Roseira), significando progresso em termos de participação de mulheres no poder, terminou com duas, uma delas a Ministra para a Igualdade, ironicamente.

Também com duas mulheres ministras se iniciou o governo de Durão Barroso (2002-2004), que teve menos cinco ministérios do que o anterior, logo poder-se-ia dizer que os homens foram os sacrificados; ainda mais o foram em 2003, quando duas mulheres substituíram homens, elevando o número delas para quatro.

Temos neste governo a primeira mulher a assumir a pasta das Finanças (Manuela Ferreira Leite); mas, na altura, esta pasta não tinha a importância que ganhou depois da intervenção da Troika em Portugal. Há que realçar que economia e finanças eram áreas largamente dominadas por homens e Ferreira Leite licenciou-se em Economia com distinção em 1963.

O governo seguinte (2004-2005), liderado por Pedro Santana Lopes, reduziu o número de mulheres para três, ao mesmo tempo que aumentou o número total de ministros de 18 para 20, um claro retrocesso do papel delas.

No primeiro governo de José Sócrates (2005-2009), assistimos a uma diminuição do número de mulheres, pois começou e terminou com duas, apesar de ter havido três ministras (Maria de Lurdes Rodrigues, Ana Jorge, e Isabel Pires de Lima); mas como só havia 17 pastas, o peso de cada mulher aumentou para mais de 5% e elas ocuparam cargos onde se tinha tornado comum haver mulheres: Saúde e Educação. A pasta da Cultura também foi inicialmente de uma mulher.

O segundo governo de José Sócrates (2009-2011), que tinha um total de 16 pastas, iniciou-se com cinco ministras nas áreas de Ambiente e Ordenação do Território, Saúde, Educação, Cultura, e Trabalho e Solidariedade Social. É estranho que, de um governo para o outro, José Sócrates tenha decidido apostar tanto em mulheres, mas a génese deste governo foram eleições em que o segundo partido mais votado foi o PSD, que obteve 29,11% dos votos e era liderado por Manuela Ferreira Leite, que em 2008 se tinha tornado na primeira mulher portuguesa líder de um partido. Talvez aumentar o número de ministras tenha constituído uma tentativa de calar a ala mais feminista do PS.

O executivo de Pedro Passos Coelho, que foi uma coligação entre o PSD e o CDS, foi inicialmente um retrocesso para as mulheres, pois em 13 ministérios, apenas dois foram ocupados por elas desde o início (Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento do Território, que foi remodelado a meio e perdeu áreas de competência, e Justiça). Aquando da remodelação, mais duas mulheres entraram para o governo: Maria de Lurdes Albuquerque na pasta das Finanças e Anabela Rodrigues na Administração Interna. No segundo governo de Pedro Passos Coelho, que durou meros dias, havia quatro mulheres num total de 15 ministérios, um retrocesso, portanto.

Finalmente, no governo actual liderado por António Costa, a chamada Geringonça, que iniciou funções com quatro mulheres em 17 ministérios (Presidência e Modernização Administrativa, Administração Interna, Justiça, e Mar), houve outro retrocesso, que foi aprofundado quando perdeu uma mulher aquando da reformulação de 2017,  mas que em 2018 adquiriu duas mulheres, resultando nas cinco que tem actualmente. Há, no entanto, que fazer um reparo importante: neste governo, uma das ministras é casada com um ministro e outra ministra é filha de um ministro, o que ofusca a fronteira entre mérito próprio e favoritismos pessoais.

Desde 1985, das 19 mulheres que foram ministras em governos do PS, cinco foram independentes, ou seja, 26,3%. Em governos do PSD/CDS, houve 13 mulheres que chegaram a ministras, sendo três delas independentes: 23%. O PS tem mais deputadas mulheres do que o PSD, logo seria esperado que não fosse necessário recorrer tanto a independentes e também seria esperado que, no meio de tantas, alguma mostrasse ambição de liderar o partido.  Tanto Manuela Ferreira Leite, como Assunção Cristas foram ministras antes de ascenderem a líderes partidárias. O CDS tem actualmente a maior percentagem de mulheres deputadas, mas é um partido com menor percentagem do voto popular do que o PSD ou PS.

O meu objectivo não é mostrar que o PSD e o CDS são partidos perfeitos no que diz respeito à participação das mulheres, mas sim ilustrar que: (1) se isto é o pior do sexismo português, então não é assim tão mau; e (2) em Portugal, o progresso da participação das mulheres em cargos governativos de grande visibilidade é caracterizado por pequenos progressos e retrocessos, mas o avanço não é claramente liderado pela Esquerda, pois maiores inovações acontecem à Direita. Para além de ter sido o PSD a introduzir a primeira mulher ministra, já teve duas Ministras das Finanças, e tanto o PSD como o CDS já tiveram líderes mulheres.

Apesar da ocasional retórica sexista de alguns membros do PSD e do CDS, não há qualquer indício que a Direita, e em particular o PSD, não trate as mulheres como pessoas competentes, pois não as impede de chegar a cargos de grande visibilidade no partido e nos governos. Se pensarmos no sexismo do PSD como um sexismo incompetente, em que, apesar dos esforços de limitar o papel das mulheres, algumas conseguem escapar e ascender ou concorrer a cargos de maior visibilidade, pelo seu lado o sexismo do PS mascara-se como um feminismo paternalista, em que assumem que são pró-mulheres desde que no topo estejam homens.

Já o PS é um partido que não arrisca. A polémica actual em torno de questões de nepotismo no executivo do PS dá a entender que muitas mulheres entram porque têm ligações a homens. Contraste-se com o caso de Leonor Beleza e Miguel Beleza: ela entrou para ministra do governo de Cavaco Silva antes dele e ela foi ministra mais tempo e não ao mesmo tempo.

Em termos de poder local, o PS nunca teve uma candidata mulher à Câmara Municipal de Lisboa, sem dúvida a mais importante do país; mas nas últimas eleições autárquicas o PSD e o CDS apostaram em duas candidatas: Teresa Leal Coelho e Assunção Cristas, respectivamente. Nessas eleições, o PSD foi criticado por não ter produzido um candidato melhor para Lisboa, que, provavelmente, na opinião de muitos, devia ter sido um homem.

Lembremo-nos também que, nas eleições presidenciais de 2016, apesar de Maria de Belém Roseira, que foi ministra várias vezes pelo PS, ter concorrido, o PS decidiu apoiar um candidato homem, Sampaio da Nóvoa. O PS também preteriu apoiar Marisa Matias, candidata pelo Bloco de Esquerda, que é parte integrante da Geringonça, o terceiro partido com mais votos (10,19%) nas legislativas de 2015, depois da coligação PàF e do PS. Se compararmos a projecção mediática de Maria de Belém, Marisa Matias, e Sampaio da Nóvoa, sem dúvida que ele era o menos conhecido e é duvidoso que tivesse obtido os resultados que teve sem o apoio do PS. Ou seja, se o PS tivesse apoiado qualquer uma destas duas mulheres, elas teriam tido mais votos do que tiveram.

O Bloco de Esquerda, que é o partido mais associado ao feminismo, é também aquele que mais tem sofrido com a actual solução governativa, pois perdeu visibilidade e, segundo algumas sondagens, intenções de voto. É como se o PS não só não apostasse nas mulheres, mas também boicotasse aquelas que encara como ameaças ao seu poder. Para além disso, é estranho que o Bloco de Esquerda ao apoiar o governo PS não tenha exigido que mais mulheres entrassem para o governo no papel de ministras.

Neste momento, o PS não tem planos de ter uma líder de partido que tenha a possibilidade de vir a ser Primeira-Ministra, ao contrário do que já sucedeu com o PSD, o CDS, e o Bloco de Esquerda. É intrigante que tenha o apoio de feministas, quando não confia nas mulheres para serem suas líderes. E que pensar de feministas que se contentam em ser lideradas por homens?

Mas talvez haja razão para não querer que o PS escolha mais mulheres depois do fiasco de Constança Urbano de Sousa. Presume-se que um homem seja competente, mas a presunção em relação a uma mulher é que é incompetente até prova em contrário e ela não passou no teste. Quanto à número dois do PS, Ana Catarina Mendes, não se augura nada de bom: para além de não ser a próxima líder, quando Catarina Martins acusou António Costa de ser como Pedro Passos Coelho no tratamento dos problemas da banca, foi Ana Catarina Mendes quem meteu a líder do Bloco de Esquerda na ordem: “não pode valer tudo”, disse.  É pena que não diga o mesmo ao homens do seu partido.

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Rita R. Carreira

A autora é licenciada em Economia, tendo obtido um mestrado e um doutoramento em Economia Agrária. Desde 1997 que reside nos EUA, país onde iniciou a sua actividade profissional na academia, tendo mais tarde enveredado por uma carreira no sector privado na área de análise de mercado de commodities agrícolas.

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