Brexit: a destruição de um certo Reino Unido

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Nesta semana que passou, um avião da British Airways, cheio de passageiros, com direcção a Dusseldorf na Alemanha, acabou por aterrar em Edinburgo, Escócia, por engano. Foi anunciado dois dias depois que alguém mandou à equipa de tripulação o itinerário errado e o erro não foi notado nem pela equipa de bordo nem pelos passageiros até à chegada a Edinburgo. Não pode haver melhor metáfora para o estado total de confusão e desorganização mental em que se encontra o Reino Unido do Brexit. Pelo menos os passageiros deste voo receberam um reembolso da British Airways. Já o povo britânico não vai receber um reembolso da verdadeira tortura mental a que tem sido sujeito desde o referendo à permanência do Reino Unido na União Europeia (UE) em 2016.

Acho sempre muita piada ao ar blasé com que os colunistas portugueses mais associados à direita conservadora têm encarado o verdadeiro desastre negocial e político que tem sido o processo do Brexit até aqui. Gente inteligente e estimada gosta de focar (e bem) a lente nos imensos defeitos que a União Europeia tem (que todos nós já sabemos e não precisam de enunciação quotidiana) mas passam completamente ao lado quando se trata de perceber que o círculo vicioso infinito em que o Brexit colocou estas ilhas tem total responsabilidade doméstica, desta classe política britânica e da forma peculiar como foi educada e como ascendeu ao poder do que propriamente da rigidez europeia (o que é que a Europa não concedeu aos britânicos nos últimos trinta anos desde isenção do espaço Shengen, até um regime agrícola específico, até isenção do euro, até ao próprio acordo de divórcio que é mais flexível do aquilo que os eurocépticos gostam de fazer passar?).

Para os nossos anglófilos mais fanáticos (que se estão a tornar como aqueles portugueses francófonos socialistas dos anos 70, totais negadores da realidade) a paralisia total do Parlamento britânico é um sinal da democracia viva, das contradições inerentes ao processo democrático e tudo se vai resolver facilmente se a Europa e só a Europa mudar de atitude. Desculpem mas por mais que admire estes senhores (e admiro alguns) as coisas não são tão lineares assim. Já vivo no Reino Unido há 25 anos (o que é diferente de escrever de fora, ter uma assinatura do Spectator e vir de vez em quando assistir a uma palestra em Oxford e pensar que isso representa a “vida britânica”) e a verdade para quem vive e trabalha cá é esta: nunca na época moderna o Reino Unido esteve num nó cego como este. Esta é pura e simplesmente a pior crise política e constitucional que este país enfrentou nos últimos cem anos.

Esta semana foi mais uma ilustração deste caos contínuo, do infindável debater de hipóteses, contra-hipóteses, alternativas, rejeições, movimentações que são perfeitamente aceitáveis no início de um processo político de reforma ou de separação (como o Brexit é) mas absolutamente amadoras e inaceitáveis quando se está a um minuto da meia-noite e com o interesse nacional em risco (o Brexit afinal era suposto ter acontecido esta sexta-feira passada, dia 29 de Março e estamos onde estamos). Depois de meses de crítica doméstica (e desespero da parte da UE) à forma como Theresa May geriu as negociações do Brexit (levando, inclusivamente o Reino Unido a não cumprir o prazo acordado e ter de pedir à UE uma extensão do processo de saída), a primeira-ministra britânica prometeu aos deputados Conservadores (em mais uma sessão emocional naquela sala apertada que eles têm no topo do Parlamento) que se demitiria se o acordo a que ela tinha chegado com a Europa (provavelmente o contrato mais detestado de sempre no Reino Unido por todas as cambiantes políticas) fosse aprovado.

Mais uma vez May assumiu-se como a Joana D’Arc da política britânica, o cordeiro sacrificial que luta pelo bem comum (isto depois de na semana anterior ter adoptado a postura confrontacional quando foi à televisão fazer um discurso perfeitamente idiota e inútil em que acusou o Parlamento de estar a bloquear o Brexit, algo que obviamente não lhe fez amigos nenhuns). A promessa não serviu de nada – o acordo foi rejeitado pela terceira vez consecutiva esta sexta-feira e portanto Theresa May continua, líder em nome apenas.

De que modo é que a demissão de May iria facilitar a resolução da crise constitucional em que o Reino Unido se encontra? Para os anglófilos portugueses, after all, esta é a terra em que todos têm bom senso e pragmatismo, reza o cliché. A verdade é que todo esse pragmatismo e bom senso foi atirado pela janela fora em 2016, e a promessa de demissão de May só vai complicar ainda mais este imbróglio. Primeiro que tudo, a aritmética parlamentar continua contra ela. Este acordo é detestado pelos Brexiteers mais fanáticos como Boris Johnson e Jacob Rees-Mogg que vieram logo dizer que sim senhor votariam o acordo (sob a desculpa de recearem que o Parlamento concordasse num Brexit mais suave) por puro oportunismo político – Boris e companhia estão-se nas tintas para os princípios políticos, o que eles querem é simplesmente ascender ao poder.  Por outro lado os deputados da Irlanda do Norte continuam resolutamente opostos ao acordo. Portanto as chances que May tem de ver um futuro novo acordo passado à direita são as mesmas que uma vaca tem de voar por cima da Baixa lisboeta (a não ser que seja uma vaca socialista claro). Há como corolário a absoluta contradição e caricatura total que é a de May se fartar de dizer que um segundo referendo seria pouco democrático e de, no entanto, não parecer haver limite para o número de vezes em que o acordo que ela confecionou com Bruxelas seja votado.  Como se vê estamos em pleno campo do cinismo e do desespero absoluto e não dos “grandes princípios democráticos” como alguns gostam de escrever.

Mas sobretudo a demissão de May não vai ajudar em nada porque reabre com maior intensidade o absoluto e único Circo Cardinale britânico que se chama a disputa pelo poder no topo do Partido Conservador (sempre com o espectro da Europa por cima). Os Conservadores já perderam quatro primeiro-ministros no espaço de uma geração apenas devido à divisão visceral no interior do partido sobre a questão europeia: Thatcher, Major, Cameron e agora a desajeitada May. Com May fora, cada facção do Partido Conservador vai (aliás já está) cheirar a oportunidade de controlar a próxima fase das negociações e sobretudo a oportunidade de vingança (este partido está em modo sanguinário). Os Brexiteers mais fanáticos sonham que um deles vá mostrar ao mundo como se joga duro com a União Europeia (a fantasia constante do Churchill ou do Nelson). Os mais europeístas, absolutamente furiosos com as cedências à direita eurocéptica de May e Cameron, estão absolutamente determinados a, pelo contrário, conseguirem um Brexit mais suave (que numa boa parte desta facção passa mesmo por um segundo referendo). Como se vê a falta de harmonia naquele partido (na realidade dois partidos agregados) só vai aumentar e isso em si arrisca piorar ainda mais o debate vicioso existente em que ninguém concorda com ninguém em absolutamente nada.

Para complicar ainda mais os procedimentos, esta semana deu-nos também um episódio de “O Professor e os Estudantes do Colégio Interno Decidem Ir a Votos” em pleno Parlamento. O professor é Oliver Letwin, um deputado conservador que se orgulha de ser muito “suave” e de responder a tudo com um “vai ser fácil” (nota lateral: quando alguém, em qualquer ocasião da vida, vos responder a algo “vai ser fácil”, por favor corram para a saída de emergência). O professor trouxe ao Parlamento uma série de votos “indicativos” (que o governo se apressou logo a dizer que não tinha obrigação nenhuma de respeitar numa demonstração clara da “estabilidade institucional” de que tanto se preza). Estes votos iam desde a opção “Alice no País das Maravilhas” (saír da UE sem acordo) até à opção “Esta Ressaca Vai ser Terrível ” (pura e simplesmente cancelar o pedido de saída da UE). Trocaram-se milhares de papéis de voto com as opções, o porta-voz do Parlamento (o fabuloso Bercow) encarregou-se de explicar várias vezes aos estudantes como votar e fizeram-se dez votos. Nem um dos votos deu uma maioria para uma opção, ou seja um exercício completamente pueril (a única que esteve minimamente perto da maioria, por oito votos, foi a opção de manter uma união aduaneira com a UE, curiosamente a que sempre me pareceu a via mais razoável de agregar tanta vontade contraditória e respeitar o resultado do referendo de 2016 ao mesmo tempo). Parece que para a semana o professor Letwin vai tentar uma nova votação, desta vez com novas opções.

Ou seja, como se já não bastasse a roleta russa do Brexit promovido pelo governo, agora há um Brexit paralelo, o conduzido pelo suave Letwin no Parlamento. Até pode ser que o Parlamento se congregue num plano alternativo nas próximas duas semanas, mas, quem garante que essa alternativa vai ser apoiada por todas as facções do Partido Conservador ou sobretudo que Theresa May (sempre tão receosa dos ultra eurocépticos do partido) vai aceitar uma solução confeccionada pelos deputados e não pelo governo? Ela que, ao longo deste processo todo não aceitou nenhum compromisso com as ideias da oposição? Os Conservadores, que se pudessem vendiam as próprias mães em troco dos seus princípios soberanistas? Não me parece. O cenário mais provável vai ser uma extensão ainda mais prolongada da data oficial do Brexit e a caminhada inevitável para eleições antecipadas para tentar resolver este impasse geral.

Entretanto o investimento empresarial estagna (está estagnado há ano e meio e a piorar), uma série de companhias mudou-se para a Europa, o déficit da balança de pagamentos está um perfeito horror (é o pior de toda a Europa) e a única coisa que se aguenta razoavelmente bem na economia britânica é o nível extraordinariamente baixo de desemprego e um sector privado que ainda é robusto. No entanto, esse mesmo sector privado está a desesperar com a continuação desta paralisia, com a incerteza e falta de rumo (na quarta-feira o director da Camara Comercial Britânica declarou que “pura e simplesmente esta questão tem de ser resolvida e já”) e as agências de rating já repetiram várias vezes que também estão a perder a paciência e que não hesitarão em cortar a dívida britânica, sobretudo se no fim de tanto debate se caminhar, por acidente, para uma saída da UE sem acordo (o que note-se é uma hipótese cada vez mais forte, muita da História mundial deve-se a acidentes de última hora).

Muito do desastre do Brexit tem a ver com a formação da elite política britânica. Tal como em muitos outros países a política britânica é dominada por uma elite muito específica e com os vícios todos do habitat onde foi criada: neste caso os universos rarificados de Oxford, Cambridge e Eton. Estas são instituições notáveis sim, mas que criam uma mentalidade completamente divorciada da realidade: uma exagerada auto-confiança, uma certa convição ingénua num lugar central da Grã-Bretanha no mundo (que já foi perdido há muito tempo, pelo menos desde 1945) e sobretudo uma educação baseada mais no poder da oratória e da generalidade do que no ensino técnico e no foco no detalhe. Ora exactamente um processo tão complexo como o Brexit precisava de técnicos altamente especializados, focados no detalhe e na capacidade de execução, tecnocratas como se chamavam nos anos 80. Em vez disso os britânicos enviaram para as negociações pessoas como David Davis, Boris Johnson e Dominic Raab, cuja ideia de detalhe é que vinho vão escolher no jantar anual da Oxford Union e umas quantas citações em latim para parecerem muito inteligentes. Em contraste total a União Europeia trouxe um tecnocrata supremo (Michel Barnier) para liderar as negociações e um processo claro, detalhado, com etapas e metas precisas. Junte-se a isso uma exagerada obsessão com ideologia do lado britânico (absolutamente irrelevante para os burocratas europeus) e a receita estava toda montada para um choque brutal de métodos e de realidades.

O país que votou no Brexit já estava mais do que farto desta elite política que vive em círculos fechados: uma década de salários estagnados, de degradação dos serviços públicos em nome de uma austeridade feita sem fio condutor global, de uma das piores taxas de miséria infantil na Europa, tudo realidades nuas e cruas e não abstrações ideológicas que não criaram propriamente confiança e amor nos e pelos políticos britânicos. O Brexit foi sobretudo um voto contra a arrogância destas elites e uma chamada brutal de atenção pelo povo. Acontece que, em vez de abrirem o processo de negociação e de clarificação pós-referendo ao povo, as elites britânicas refugiaram-se primeiro no bunker das negociações e desde há seis meses em debates em círculo vicioso no Parlamento. Daí não ser surpreendente a sondagem recente do Times em que 90% dos britânicos revelaram não se sentirem representados por nenhum partido, nem pela obsessão patológica dos Conservadores com a Europa, nem pelo socialismo venezuelano e total falta de clareza estratégica dos Trabalhistas. Theresa May tem uma taxa de aprovação de 14%, Jeremy Corbyn nem chega aos 10%. A mesma sondagem indicou um aumento exponencial do desejo de independência na Escócia e até, tabu dos tabus, de uma integração da Irlanda do Norte na República da Irlanda.

O Brexit prometido pela ingenuidade e leveza extrema de David Cameron (mais outro produto da educação superficial de Oxford e Eton) era suposto ser o grande acto reconciliador – primeiro do Partido Conservador com a questão europeia – e depois do país com o seu lugar no mundo e com as suas elites governativas. Em vez disso funcionou como o grande acto fragmentador do país, uma verdadeira trituradora dos elos comuns que unem esta sociedade consigo própria e com os seus representantes democráticos. Tal é o estado das coisas que vai ser preciso muito mais do que um Churchill ou um Nelson moderno para reconciliar o país de novo consigo próprio, quanto mais com o resto do mundo.

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Ricardo Arruda, 43, estudou Ciências da Comunicacão em Lisboa e fez um MBA em Finanças nos Estados Unidos. Vive há mais de vinte anos entre os Estados Unidos e o Reino Unido e foi gestor em companhias financeiras tão variadas como a AXA, Merrill Lynch e AVIVA. Nos tempos livres gosta de fotografia, viajar, musica e ler livros de História. Continua a adiar a escrita do primeiro livro mas até lá vai ser o nosso correspondente em terras de Sua Majestade.

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