Assédio no ar (e noutros lados)

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Seria de esperar que depois do movimento #metoo – que, enfim, não foi propriamente uma ocorrência que tenha passado despercebida mesmo ao mais distraído – até os homens propensos ao assédio tivessem percebido que, mantendo o hábito, seria melhor guardar discrição. Assim como tomar viagra, ver pornografia ou ser dono de vários gatos – há realidades da vida de um homem que é melhor não serem públicas. Mas não, aparentemente os homens propensos ao assédio continuam como se nada fosse. O que, em boa verdade, não surpreende. Foram tantas as vozes reacionárias (de ambos os sexos) que se opuseram ao #metoo, o desvalorizaram, o escarneceram, o menorizaram que podemos dizer que há ainda uma grande corte de gente que quer manter os condicionamentos que o assédio traz às mulheres – condicionamentos profissionais, da liberdade de movimentos, da liberdade de autodeterminação sexual. E, no caso de que vos venho falar, de liberdade de estar e existir em paz no espaço público – aqui, um avião.

Dei por esta história ontem no twitter da jornalista Joanna Chiu, que eu já seguia por ter sido correspondente na China (os screenshots da série de tuites que Chiu escreveu estão no fim do texto). Fiz retuit e, como eu, mais uns tantos milhares de pessoas que passaram pelo Twitter. De tal forma ganhou volume e teve impacto que Joanna Chiu terminou escrevendo uma peça para o seu jornal The Vancouver Star.

Resumindo, um homem de trinta e muitos anos, quarenta e poucos, apanhou uma adolescente afastada da família num avião (num voo noturno com a maioria dos passageiros dormindo), meteu conversa (sexista que dá vómitos: ria quando ela lhe contava as ambições profissionais, questionava – a uma adolescente – como é que poderia ter família e carreira) e às tantas estava a pedir-lhe fotografias ‘dirty’. Esta cena foi parada quando Joanna Chiu – que ouviu o que se passava, enquanto sentada na fila da frente, e ficou de sobreaviso – disse ao homem que se estava a portar como um pervertido. Outra senhora da fila de trás, também a ver o que se poderia passar com a adolescente, interveio igualmente. Foi chamada a tripulação, chefiada por uma mulher, que confirmou a história com toda a gente (incluindo a aliviada adolescente) e o homem foi obrigado a mudar de lugar (depois de fazer barulho e pedir para falar com o chefe da senhora da tripulação – que claro que uma mulher não pode ser o pináculo da cadeia de comando).

Vários fatores entram aqui.

Um: a adolescente, apesar de incomodada, não fez queixa. Talvez nem se tenha apercebido que o comportamento predador do homem, apesar de desagradável, devia mesmo ser punido, denunciado, exposto. Se calhar teve vergonha de ter de pedir ajuda, de reconhecer que não conseguia lidar por ela com a situação. Quem sabe supôs que se pedisse ajuda seria ignorada, ninguém ligaria ao seu problema, não quereriam saber (not my business é um mantra tão confortável), constatariam que ela é que estava a ser imatura e histérica (as mulheres quando se queixam são sempre histéricas), se confirmassem com o pervert ele negaria e claro que acreditariam nele, porventura rir-se-iam dela – e bem sabemos que na maioria das situações este cenário seria o que ocorreria.

Deve fazer-nos refletir, porque as adolescentes têm de sentir que podem denunciar estes casos em segurança.

Dois. Duas mulheres estavam à escuta porque perceberam que o que se passava entre aquele adulto maduro e a miúda adolescente não era normal, que ele estava a abusar dela estar sozinha e ser inexperiente. É muito bonita e enternecedora esta solidariedade e proteção mútua entre as mulheres.

Três. Os homens não intervieram. Ou porque não repararam, ou porque perceberam e acharam que a vida é mesmo assim e que uma adolescente a viajar sozinha habilita-se. Ou, pior, fariam o mesmo se estivessem sentados ao lado da adolescente, já que é função de uma adolescente (na verdade, de todas as mulheres) massajar o ego de adultos maduros.

Abro um parêntesis. Uma das características mais perturbantes que tenho reparado nas redes sociais é a quantidade de homens – que eu não conheço de lado nenhum nem faço ideia quem são – que supõe ser minha obrigação (de mulher que reputam de agradável à vista) entretê-los, flirtar com eles, responder a mensagens ora imbecis ora insinuantes, mostrar-me divertida com todas as insanidades sem piada que proferem, declarar-me muito agradecida pela atenção que me prestam. (Claro que há abordagens educadas, agradáveis e de pessoas que têm pontos de vista interessantes; não é dessas que falo.) E não sendo a resposta a que esperam (que raio: quem responde a, sei lá, imagens do Snoopy com flores acompanhadas de propostas hardcore enviadas por desconhecidos?!), muito frequentemente se tornam hostis, por messenger ou nos comentários nos posts.

É certo que as redes sociais potenciam o pior de toda a gente. Contudo não descobrem negrumes que não tenhamos já na vida não digital. Pelo que considero assustador a quantidade de homens boçais que há por aí à solta que vê uma mulher desconhecida como um objeto que serve para a sua auto satisfação, ser não merecedor de respeito básico nem dotado do livre arbítrio de recusar o flirt. Em suma, a quantidade de homens sem educação que não vêem as mulheres como uma pessoa mas como uma boneca insuflável que fala e pensa.

Quatro. Noto como os homens que se riem das ambições profissionais das raparigas, que se esforçam por lhe tirar as ideias de que serão alguma coisa mais que mães de família – evidentemente estes homens são os mais propensos ao assédio. Se as mulheres são seres inferiores que não valem tanto quanto os homens, claro que também não há problema de se abusar da inexperiência de uma miúda (que continua ser inferior).

O pior desta história é que quase todas as mulheres (se não mesmo todas) se reviram nesta situação de avião e têm algo parecido para contar, em meios de transporte sortidos. Não se trata de desconhecidos simpáticos e educados que metem conversa e até tornam uma viagem mais agradável e interessante. São homens que, apanhando-nos sós e fazendo uso do diferencial de experiência e de força física, dizem coisas e conduzem conversas ordinárias que pretendem rebaixar-nos e embaraçar-nos. A minha pior experiência foi uma vez com um taxista (onde ia sozinha, aí com uns 18 ou 19 anos), que fez comentários explícitos sobre uma Maria João aterrorizada a ver se teria de sair de repente em algum semáforo encarnado. (De resto com taxistas tenho várias histórias, incluindo já na versão adulta da minha pessoa.)

Lembro-me de outra vez, no comboio entre Hong Kong e Cantão, sentada separada do meu grupo, em que um americano também bastante mais velho (eu teria uns vinte e tantos anos, mas ia desportiva, sem maquilhagem e tinha mesmo ar de miúda), sentado ao meu lado, não parava de me chatear e querer trocar de livro comigo e saber onde iria ficar em Cantão. Ainda não havia smartphones, penso que só me livrei de pedidos mais escabrosos por esse défice tecnológico. E por ter assaz antipática com aquele invasor do meu espaço – já estava a treinar, sem saber, para as redes sociais.

É desolador que o panorama de abuso da solidão e inexperiência de mulheres novas se mantenha tal como quando eu era adolescente ou uma adulta jovem. Revela como há forças que mantêm as questões do feminismo e da libertação das mulheres exatamente inalteradas ao longo de décadas. E, não sejamos caridosas, quem contribui para isso veiculando ideias conservadoras do papel (e dos comportamentos aceitáveis) das mulheres e dos homens é cúmplice do ambiente onde estes assédios se verificam.

E é problemático pelo que diz das mensagens que continuam a ser transmitidas aos homens, que ou se aproveitam de uma mulher nova estar sozinha ou permitem despreocupadamente que outros o façam. Há pouco tempo o polémico anúncio da Gilette preconizava que os homens devem parar os comportamentos predatórios dos outros. Como se vê, esta é uma mensagem necessária. Quanto às ideias que se repassam aos rapazes e homens – pela educação, pela publicidade, por toda a cultura envolvente – que glorifica uma masculinidade agressiva e predatória, estamos a falhar quer aos rapazes quer às raparigas.

Por outro lado, dá alguma esperança que esta história tenha alcançado a dimensão que alcançou, divulgada por mulheres – e homens, que, não sentindo na pele o que se relata, conseguiram empatizar com a adolescente. Todos temos de estar mais atentos – e intervir quando é necessário. Não somente devido ao potencial perigo de abuso (sexual, ou da imagem de uma mulher), mas, ainda, porque estes assédios são uma intolerável restrição à liberdade de movimentos das mulheres e das raparigas, à liberdade de existirmos em paz nos espaços públicos e de usufruirmos deles.

Por fim, foram as redes sociais que responderam de maneira avassaladora ao que começou por ser um desabafo de uma jornalista, e tornaram este caso num alerta. De facto: as realidades não são boas nem más em si mesmas, são o que fizermos delas.

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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