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Imagem de Isabel Santiago.

Na semana passada, um centro de apoio a vítimas de violação no Canadá – o Vancouver Rape Relief – viu cortado o seu financiamento público pela Câmara Municipal de Vancouver, com base em alegações de transfobia e discriminação contra pessoas trans e contra “trabalhadoras do sexo”.

Como se pode ler na declaração pública, este centro actua desde 1973 e criou um abrigo para mulheres vítimas de violação, um grupo especialmente vulnerável. Transcrevem-se as partes mais relevantes da declaração:

A decisão do Conselho Municipal de Vancouver tem a intenção de nos coagir a mudar a nossa posição e prática de oferecer alguns de nossos principais serviços apenas para mulheres que nascem do sexo feminino.[…]

  1. A tentativa do Conselho Municipal de Vancouver de minar a nossa autonomia como um grupo de mulheres – de decidir a quem servimos, a quem nos filiamos e com quem nos organizamos – também mina as proteções que a lei nos assegurou. Tal conduta não tem lugar em uma sociedade democrática.
  2. A decisão do Conselho Municipal de Vancouver de cortar o financiamento do Abrigo de Mulheres e Alívio às Vítimas de Estupro de Vancouver é discriminatória. Muitos subsídios da Cidade de Vancouver são concedidos a organizações que fornecem programas e apoiam grupos específicos de pessoas, como jovens aborígenes, idosos chineses, surdos e trabalhadores migrantes. Justamente, nenhum desses grupos foi desafiado com a exigência de que eles demonstrassem “acomodação, acolhimento e abertura para pessoas de todas as idades, habilidades… e etnias”. Tal demanda para essas organizações seria incompreensível, já que contradiria a essência e propósito de seu trabalho. No entanto, é isso que nos está sendo perguntado sob o disfarce de inclusividade.[…]
  3. Não temos dúvidas de que as pessoas cujo comportamento não é consistente com a definição patriarcal socialmente imposta de masculinidade ou feminilidade, incluindo pessoas transexuais, sofrem discriminação e violência. As pessoas transexuais merecem e devem viver em segurança e ter os direitos e oportunidades iguais que são prometidos a todos nós. Quando se trata de nossos serviços, temos um compromisso coletivo de cuidar da segurança de qualquer um que ligue para a nossa linha de crise, incluindo pessoas transexuais.
  4. Como parte dos esforços contínuos para nos desacreditar, fomos acusadas de que “não apoiamos profissionais do sexo” (inclusive por um membro do Conselho Municipal de Vancouver nas redes sociais). Os nossos serviços estão disponíveis para todas as mulheres que sofreram violência masculina. Prestamos assistência a mulheres e meninas na prostituição que foram agredidas por homens, proxenetas ou homens que as pressionaram para a prostituição. Prestamos assistência a mulheres que estão atualmente sendo prostituídas, mulheres que estão tentando escapar da prostituição e mulheres que foram traficadas para a prostituição.
    Entendemos a prostituição como exploração sexual e violência masculina contra as mulheres. A prostituição normaliza a subordinação das mulheres. Ela explora e compõe a desigualdade sistêmica com base no sexo, raça, pobreza, idade e deficiência. Nossa análise da prostituição como uma instituição patriarcal prejudicial e nosso compromisso com a abolição é derivada das, e é reforçada para, mulheres prostituídas que nos ligam e às membras de nosso próprio coletivo que saíram da prostituição.
  5. Nascer do sexo feminino ainda significa ser treinada, socializada e forçada a se submeter à dominação masculina. O fato de que nascemos fêmeas e somos educadas como meninas até a idade adulta como mulheres molda nossas vidas de maneira profunda.
    A violência masculina contra nós é uma experiência dura, mas comum, e não é a única de maneira nenhuma. A nossa sexualidade é controlada e manipulada – seja punindo mulheres por não serem virgens, ou promovendo pornografia e BDSM como expressões libertadoras da sexualidade feminina. A nossa capacidade reprodutiva é controlada e manipulada – seja por meio do aborto forçado e da esterilização, pressionando as mulheres a engravidar ou forçando a gravidez das mulheres por meio de estupro.
    Sermos meninas e mulheres neste mundo geralmente afeta tanto a forma como nos parecemos como a forma como agimos em privado e em público; o que nos é permitido fazer, encorajado a fazer e o que somos recompensadas por fazer; e também o que somos desencorajadas a fazer, proibidas de fazer ou punidas por fazer.
    E é deste lugar, em um espaço só para mulheres, com outras mulheres, que têm a experiência compartilhada de nascer sem escolha à classe de mulheres oprimidas, nos unimos para organizar e criar estratégias para nossa resistência e nossa luta pela libertação das mulheres
    .”

Repare-se que o centro não recusava ajuda a pessoas transgénero vítimas de violência sexual – o centro disponibiliza uma linha telefónica de apoio, livremente acessível por parte de qualquer pessoa. A única limitação imposta era na casa abrigo, cujo acesso está vedado a pessoas do sexo masculino – vítimas e trabalhadores. E não é compreensível esta limitação? A maioria das mulheres vítimas de violação foi violada por um homem. Na sequência do crime, é natural que esteja fragilizada, traumatizada, assustada e que queira estar num espaço seguro, resguardada do contacto com pessoas do sexo masculino, o sexo do seu violador.

Como explicado nesta página, o Vancouver Rape Relief é o único centro da cidade que não aceita abrigar pessoas do sexo masculino. Ora isto significa que os homens e as mulheres transgénero que nasceram do sexo masculino têm alternativas de apoio e acolhimento disponíveis em todas as outras instituições e abrigos de apoio às vítimas. Mas não era esse o seu objectivo, assegurar soluções diferenciadas para si. Há vários anos que os transactivistas canadianos assediavam o abrigo pela sua política female-only. Visavam não a segurança das mulheres transgénero, mas o ataque às mulheres. Como é que cortar o financiamento público deste abrigo deixa as mulheres trans mais seguras?! O único efeito que tem é deixar as mulheres vítimas de violação mais inseguras e sem apoio! E se o querem ter, têm de fazer compromissos e aceitar partilhar o espaço de acolhimento com pessoas do sexo masculino, 80% das quais mantém o pénis. Estas mulheres foram vítimas de violação: o pénis é quase sempre a arma do crime, quando falamos do crime de violação. Seria como obrigar vítimas de tentativa de homicídio com arma de fogo a partilhar espaços de acolhimento com outras pessoas que andam permanentemente armadas.

A misoginia desta situação é de tal forma gritante que nos devia chocar a todos. No entanto, reina o silêncio, especialmente nas plataformas ditas “feministas” que escondem uma vez mais a cabeça na areia quando o tema é desconfortável.

Este é um caso ostensivo de discriminação sexual, mas contra o sexo feminino. As mulheres lutaram arduamente por espaços segregados que existem para nossa segurança. Não somos caprichosas nem fúteis por querer manter estes espaços – é um direito nosso! Um direito constitucionalmente consagrado, tal como é o direito de nos organizarmos, associarmos e podermos escolher os membros que aceitamos nos nossos grupos.

A Câmara Municipal de Vancouver tem o direito de subsidiar ou não as entidades que escolha. No entanto, não pode cortar um financiamento que vinha sendo concedido há décadas, sem outra razão que, de repente, discordar das regras associativas de determinada entidade.

O que foi feito equivale a cortar o financiamento público a uma entidade que presta apoio a vítimas de cancro, por a entidade não aceitar acolher pessoas que nunca tiveram cancro, mas que padecem de outras doenças. É uma aberração.

Temos todos os mesmos direitos humanos, todas as vítimas de crimes devem ter o direito a ser apoiadas e ajudadas, independentemente do seu sexo ou orientação sexual. Mas precisamos de respostas diferenciadas, especialmente nas situações em que estamos particularmente vulneráveis.

Espaços segregados foram uma conquista do feminismo, que nos habituámos a ver como um direito adquirido. Contudo, esse direito está sob ataque. Acreditámos ingenuamente que os direitos das mulheres eram inalienáveis, mas sabemos hoje que temos de os defender diariamente, caso contrário iremos perdê-los.

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