Tenho a dizer que não vi nenhum dos dois reality shows que estrearam na TVI e na SIC. Nem vou ver, recuso-me. Tal como não vi aquela sargeta da supernanny. Mais não vi um único minuto dos discursos de Bruno de Carvalho que animaram o verão passado. E não é por isso que não tenho opinião. Afinal nunca espetei garfos nos braços, e ainda assim sei que dói. Também nunca pintei o cabelo de louro e não é por isso que deixo de ter a certeza que não ia gostar. Já li por aí descrições das tais mistela ‘Quem quer casar com o meu filho?’ e ‘Quem quer namorar com o agricultor?’. Por exemplo estes dois textos da Magg. É suficiente para poder dizer umas coisas sobre as empresas que oferecem este tipo de produtos de um machismo empedernido.
Façamos primeiro uma viagem pela estrada da memória. Em 1895 (isso, há mais de um século), foi representada pela primeira vez uma peça de Oscar Wilde chamada The Importance of Being Earnest. (Há um filme recente – com Colin Firth, Reese Witherspoon, Frances O’Connor, Rupert Everett e essa deusa que é Judi Dench – que vai muito bem e, se não viram, recomendo.) Lá no meio, Lady Bracknell faz uma entrevista muito cómica a Jack Worthing para apurar se ele cumpre os requisitos para casar com a sua filha Gwendolen. Fuma? Sim. Ah, que bom, um homem deve ter uma ocupação. Termina mal aquela cena, claro, quando Lady Bracknell descobre que as origens conhecidas de Jack são um vulgar saco de viagem com asas onde foi entregue por engano ao seu futuro tutor no bengaleiro de Victoria Station, linha de Brighton.
(Vejam um pequeno excerto do que vos conto.)
Viajando no tempo até 2019, temos umas mães (saídas das cavernas) na televisão entrevistando – sem o apuro e o humor de Lady Bracknell – umas mulheres (aparentemente saídas de revistas de mulheres nuas e sites porno) para casarem com os seus imprestáveis filhos. As perguntas de mães circa 1946 e de filhos inúteis são de fazer corar de vergonha alheia, vomitar, puxar os próprios cabelos e perguntar ‘que mal fiz eu para partilhar o mundo com esta gente?’
É tudo mau. As mulheres supostamente à procura de marido que se submetem voluntariamente àquela degradação (provavelmente em busca de notoriedade para outros voos quaisquer). As mães que educaram uns imbecis e vêm publicitar que querem encontrar uma criada gratuita para limpar a casa, alimentar o rebento e parir os filhos do seu querubim idiota, e só falta pedirem para fazer um teste de virgindade às candidatas. Os homens que vão ali assumir que são uns falhados e não conseguem encontrar mulher, que deixam que a mãe lhes mande na vida e que são tão inúteis no amor como na cozinha e na tábua de engomar. As vergonhas que as pessoas aceitam passar por dinheiro ou por notoriedade.
À parte a figura indecorosa que todos fazem, que dizer de empresas que entendem colocar no mercado produtos onde as mulheres são apresentadas como gado que serve para cozinhar e limpar e que é bom que não tenha vícios (fumar? horror; sair à noite? vagabunda) nem um passado colorido, que as mulheres em Portugal continuam a querer-se castas se querem arranjar marido? Que mimos devemos dar a duas apresentadoras mulheres que aceitam colaborar (sim, a palavra que eu melhor encontro para certas mulheres é ‘colaboracionistas’) neste enxovalho da emancipação feminina?
Bom, digo há muito tempo que as mulheres (e os homens decentes) devem usar dois poderes essenciais: o de eleitoras e o de consumidoras. O último adequa-se aqui. E a outros casos. Há uma empresa que faz anúncios sexistas? É simples, é não comprar a essa empresa. Eu deixei de comprar néctares Compal depois de um anúncio inacreditável em que se mostrava uma mãe como uma burra de carga, que nem comia ao mesmo tempo que a família e a quem os filhos mandavam trazer os alimentos para a mesa. É um debate com muitos anos, este: o poder da publicidade para reforçar ou combater estereótipos.
Outra empresa tem políticas de recursos humanos que desprezem as mulheres? Não tem administradoras, gestoras, chefias femininas? Tem diferença salarial entre homens e mulheres? Oh que pena, lá vou eu, sempre que puder, gastar o meu dinheiro noutro lado. Uma terceira oferece produtos aparentemente alegadamente destinados a todos os públicos (ou, às vezes, nem isso) mas que são desenhados e concebidos partindo apenas do ponto de vista masculino e respondendo às solicitações e necessidades masculinas? Mas que aborrecido, se uma corporação me inclui como se por favor e considera que eu não mereço o esforço de ter as minhas necessidades de consumo, investimento, poupança, whatever satisfeitas, bom, sobrevivam só com as consumidoras que apreciem esta abordagem agreste, não?
Portugal é um país profundamente machista. No mundo do trabalho, nas redes sociais, nas relações conjugais (vide o já famoso estudo da FFMS e da – inexistente – partilha de tarefas domésticas e de cuidado aos filhos). E nos media – não esquecer que apenas dois órgãos de comunicação social são liderados por mulheres: a Visão e a Rádio Renascença. Ou a quantidade de programas e páginas de jornais e televisões que estão completamente preenchidas no masculino. (Adivinhem. Também não vejo, não leio, não compro.) Já é tempo de se dizer, sem parar, que ou se é parte da solução – combater o machismo tão entranhado – ou se é parte do problema (manutenção do status quo machista que restringe de facto a liberdade e as oportunidades e os direitos das mulheres). São duas posições inconciliáveis. E, se se é parte do problema, neste caso a solução é simples: não dar audiência nem à TVI nem à SIC, nem comprar os produtos mostrados nos anúncios nos intervalos dos programas.