Sou feminista. Posso falar por mim?

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Manifestante na marcha #8M, em Lisboa. Fotografia de Carla Macedo

Cabeça fria. Nem tudo o é dito ou escrito para o público é a verdade. A vontade de manipulação pode falar mais alto do que o compromisso com os valores que cada um tem como seus. Os fins justificam os meios.

Falávamos disto noutro dia no jardim, a propósito do Vox, partido Andaluz que à conta do discurso reacionário, que inclui a descriminalização da violência doméstica, ganhou lugar no parlamento regional e no palanque da manifestação pela Espanha Unida ao lado da direita progressista dos Ciudadanos e do clássico PP. A minha irmã fazia a conta: “há mais de dez mil queixas de violência doméstica na Andaluzia. O Vox foi buscar os votos aos criminosos.”

No próximo passeio no jardim, faremos seguramente uma conta parecida. Quantos degraus subiu Joaninha no pódio da notoriedade e quantos votarão, haja essa oportunidade, na jovem mãe de cinco filhos, médica e promissora defensora das donas de casa perfeitas, devotas dos maridos e adoradoras da gata borralheira?
A questão que devemos colocar é se Joaninha pensa mesmo o que escreve ou se o que debita serve um propósito de manipulação grosseira dos descontentes – eventualmente os criminosos e os preguiçosos votarão na excelsa e tarefeira mãe de família.

Eu por mim acredito que a senhora tem empregada interna, o que a ser verdade lhe tira alguma propriedade para falar sobre os cuidados com a casa e partilha de tarefas domésticas. É tudo o que tenho a dizer sobre o caso que fez escorrer tanta tinta há poucos dias. Não quero falar por Joana mas também não quero que ela fale por mim.

Sou feminista. Tive uma epifania na missa, quando o padre muito chato me fez pensar que eu poderia, quando fosse grande, fazer aquilo muito melhor. Tinha 8 anos e logo de seguida perguntei por que razão não poderia eu vir a ser sacerdote. Tive outras epifanias em missas. Na Catedral de Barcelona ouvi um padre, perante uma assembleia enorme, dizer que todos os flagelos da sociedade era originados pelo divórcio e elencava: a prostituição, a droga, as crianças abandonadas pelos pais. Foi a última epifania que tive na missa. Tinha 20 anos e não fui capaz de não me chocar com a misoginia de um homem que não podia saber o que custa manter uma relação matrimonial, mesmo quando ela é boa, quanto mais quando há desacordo e violência. O padre ignorava as mulheres que na plateia já tinham sido espancadas pelo marido, violadas, roubadas ou humilhadas pelos que deviam ser os primeiros fatores de felicidade e segurança. Dizia-lhes diretamente que não fugissem de uma relação de opressão.

Como é que sei que estavam lá mulheres maltratadas? Porque as mulheres maltratadas estão em todo o lado. Numa conversa com duas amigas é possível identificar uma série de casos: uma colega de liceu que apanhava do namorado, uma amiga da faculdade cujo marido lhe batia com um saco de laranjas para não deixar marcas, uma prima, uma vizinha, uma irmã, uma filha.

Tenho um casamento feliz. É possível ter uma relação longa e boa, para ambos. É possível que o amor nos dê alegrias e nos sirva de suporte a ambos para ultrapassar as dificuldades que nos aparecem pelo caminho. Somos uma equipa e repetimos esta frase aos nossos filhos. Um rapaz e uma rapariga, por ordem cronológica.

Sou independente, de pensamento e de finanças. E portanto sou livre. E esta liberdade só a tenho porque outras antes de mim estiveram na rua a lutar por salários dignos. Há pouco menos de cem anos, as ruas de Lisboa e Setúbal enchiam-se de mulheres que se manifestavam pelo aumento dos salários. Mulheres operárias com filhos pelas mãos na rua a lutar por justiça salarial. Na mesma época o jornal Avante, depois ilegalizado sob a ditadura, explicava como a igualdade salarial beneficiava toda a classe operária: o aumento salarial para as mulheres significava maior poder negocial dos trabalhadores por se acabar com a mão de obra mais barata.

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Greve das varinas, no início do século XX (fotografia: Joshua Benoliel)

Nem menos, nem mais, para o mesmo trabalho salários iguais. A luta pelas condições dignas de trabalho e de vida devia ser de todos. A igualdade salarial entre homens e mulheres é da mais básica justiça social e deve ser vista também como instrumento de aumento salarial para todos. Há demasiados indicadores sobre a concentração de riqueza em Portugal, demasiadas diferenças entre o topo e a base das empresas – uma das maiores registadas pela OCDE. Mas enquanto houver mão de obra qualificada, disponível e mais barata, continuaremos todos a receber uma pequena parte da riqueza que geramos. E neste momento as mulheres já têm mais qualificações do que os homens o que não augura nada de bom para o futuro deles. Por outro lado, num contexto de maior distribuição da riqueza gerada pelos fatores de produção (leia-se capital, energia, equipamentos e trabalhadores) as economias têm melhores desempenhos, mais estáveis mesmo em tempos de crise, menos dependência da alta finança, mais dinheiro na economia real.

Gente independente. Era o que devíamos ser todos. Mulheres e homens.

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