Se este texto fosse um romance, começaria por ilustrar como o nascimento da Patrícia Ferraz de Sequeira era já um sinal dos deuses. De facto não é para toda a gente nascer no elevador do prédio onde os pais viviam, mal tinham saído de casa para correrem para a maternidade. Patrícia não perdeu tempo a mostrar uns traços de carácter que a definem: gosta de decidir, de liderar e de estabelecer as regras por que vive.
E foi noutro elevador o nascimento de Patrícia Sequeira para o cinema. O primeiro filme (pelo menos dos que não ficaram numas fitas trancadas a cadeado) foi uma curta metragem filmada num elevador de um prédio das Avenidas Novas, em Lisboa, e apresentado a uns lucky few (entre os quais esta vossa amiga) no Lux. A temática era curiosa – e madura e agridoce – para alguém tão nova como Patrícia: a solidão e os artifícios que usamos para projetarmos para os demais algo que não somos.
‘São vocês, meus queridos, a maior revolução acontecida em Portugal depois do 25 de abril’, disse Natália Correia da relação de Snu Abecassis e Sá Carneiro.
O nascimento de Patrícia para a televisão foi mais pitoresco. Teve a oportunidade de fazer um estágio na Edipim – que na altura fazia telenovelas, séries de televisão e os programas do Herman José – e aproveitou. Em vez de descer de mota até à Junqueira para o curso de Antropologia no ISCSP (qual curso?!), todos os dias corria de Lisboa para Ranholas (sim, há uma localidade com este nome) feliz da vida sem ganhar nenhum ordenado. Começou como assistente de produção, depois anotadora e, duas décadas em fast forward, realizou um filme que promete ser um marco – no Portugal político (que encontra sempre desculpa para ficar em alvoroço) e no cinema português (daquele cujo objetivo não é um genocídio de espetadores através dessa arma de destruição maciça chamada tédio) – contando a história da mulher por quem Sá Carneiro se apaixonou.
Entra Snu – a mulher e o filme. Como diz a minutos tantos Patrícia Sequeira, ‘é um filme sobre uma amante’. Mais prosaicamente (ou não), também é um filme sobre um casal ‘que tinha urgência no amor e na mudança do país’. ‘Viviam o agora no amor, não era essa coisa do futuro.’

‘Foi um convite’, diz Patrícia. ‘Normalmente nunca trabalharia por encomenda, mas entusiasmei-me pela história, uma história de amor que tinha de ser contada. É muito nossa. Os portugueses também são aquilo que foram e como reagiram. Interessou-me esta nossa relação com a felicidade e com a felicidade dos outros.’ Como assim a relação com a felicidade? Sá Carneiro evidentemente escolheu a felicidade e pôs à disposição a sua carreira política, ponderou abdicar da da sua vida política e do seu sonho para ficar com a mulher que amava. Para Patrícia, é a relação com Snu que revelou o homem que era: ‘um político de verdade, sem hipocrisia’.
Mas os portugueses também queria uma história de amor, ‘queriam que aquele homem carismático fosse feliz’. ‘Prova-se de prova provada que o eleitorado estava-se nas tintas. Parece que se revê neste homem e que este homem abre portas para as pessoas serem felizes.’
Ou, como diz Natália Correia no filme, ‘São vocês, meus queridos, a maior revolução acontecida em Portugal depois do 25 de abril’. ‘Essa é a frase que me ligou mais ao filme. Sobretudo a revolução social que aconteceu, quando os homens tinham as amantes escondidas. Parecia que as pessoas não podiam ser felizes. Parece que ser feliz é uma coisa preguiçosa, é um luxo. E incomoda muito a felicidade dos outros. E aqui temos o assumir de um amor que é superior a tudo. Isso foi um abanão social.’

Mas o filme não é sobre Sá Carneiro. Snu é a chave de entrada do filme e da história de amor, ‘esta protagonista sem protagonismo, que traz imenso mundo a este homem e que está completamente esquecida. As pessoas nem sabem que ela morreu no avião. Há quem me pergunte “E ela? Ainda é viva?”‘ (E eu que tenho andado nos últimos dias a dizer a piada que vou contar a toda a gente como termina a história de Snu e Sá Carneiro. Afinal descubro que teria sido mesmo um mega spoiler para algumas pessoas.)
Certo, ‘com um homem sedutor, intempestivo e carismático como Sá Carneiro, era muito fácil que Snu se apagasse’. No entanto, Snu Abecassis foi uma mulher notável por direito próprio, para além da protagonista da história de amor com o político mais magnético do pós-25 de abril. Já antes de conhecer Sá Caneiro, estava também a abalar os alicerces do país pequeno e desinformado com a criação da editora Dom Quixote. (Eu própria, que não sou exatamente a típica pessoa desinformada, só soube desta atividade quando há anos li a biografia de Snu escrita por Cândida Pinto.)
‘É na desarrumação que eu encontro a Snu. Ela estava a ser desarrumada pelas circunstâncias da sua vida. Por que é que há tanta gente a fugir da paixão? Porque ela desarruma-nos.’
‘Snu viu um país fechado, que tinha censura, e abriu uma editora. Vê um país como se fosse uma casa fechada e é preciso abrir portas e janelas para deixar entrar o ar. Insistia em trazer informação para Portugal. Acaba por contornar a censura e publica aquilo que todos nós conhecemos que são os Cadernos da Dom Quixote, que compilava as notícias mais importantes sobre o mundo. Esta mulher é a internet da altura.’

A admiração de Patrícia por Snu é notória e transparente. ‘Eles são os meus heróis’, diz às tantas. ‘Não a vejo fria. É uma mulher determinada e apaixonada. Ela traz a insolência dos países democráticos. Loura, elegante, a vestir Celine, não se vestia cá. Era uma pessoa diferente, em Portugal é complicado. Uma pessoa objetiva é arrogante, é seca, é adjetivada logo’. De resto, ‘este amor com Sá Carneiro começa muito pela cabeça’. E inclusive o tal ‘escolho a mulher que amo’ de Sá Carneiro é posto em sentido por Patrícia. ‘As pessoas dizem que a assumiu perante tudo e todos. Mas esta mulher nunca se deixaria ficar em segundo lugar, para a clandestinidade, não é uma mulher que se remetesse à ideia de amante escondida. Ele assumiu porque não tinha alternativa.’
De certa forma Snu é um elogio das elites (algumas, algumas). ‘Fala-se muita das pessoas que vêm do nada e a pulso constroem, passaram fome e dificuldades e hoje são pessoas extraordinárias. Também há que valorizar quem poderia, pelo seu estatuto, pela sua família, não fazer absolutamente nada porque estão cheios de dinheiro, mas não, podiam estar quietas mas decidem fazer imenso. Para Snu era uma missão.’
‘Esta pessoa que está aqui à tua frente fez um filme sobre aquela época. E há coisas que estão exatamente na mesma. O discurso da Maria João Sande Lemos, no comício que eu mostro, podia estar a ser dito na Assembleia da República ainda hoje.’
E como representa Patrícia esta mulher? Talvez seja altura de referir aqui que os figurinos estão exemplares, os cenários de morrer, o filme é uma delícia narrativa e uma história bem contada. A estética visual é irrepreensível e um deleite, a fazer lembrar, para melhor, a aventura cinematográfica desse esteta absoluto que é o Tom Ford. Os atores foram bem escolhidos, com uma soberba Inês Castel-Branco como Snu e um admirável Pedro Almendra em versão Sá Carneiro. Patrícia não tem talento para o típico filme português aborrecido.
Patrícia, realizadora e contadora de histórias, escolhe ‘a verdade das pessoas mais que a verdade dos factos, mas só o faço porque tive um prévio estudo muito forte dos factos’. ‘Quando se tenta em cinema fazer algo muito fiel à realidade, perde-se a arma mais interessante, que é a sedução. A ficção é sedutora. Liberto-me da realidade? Sim, se me trouxer verdade e poder de atração. Dou factos, mas também poesia. Quando me desvio dos factos, sei que me estou a desviar.’

Foi assim que construiu a sua Snu. À atriz Inês Castel-Branco, pediu contenção, que não se mexesse muito, que mostrasse Snu pelos silêncios. Patrícia valorizou os pormenores. ‘Snu tinha uma pena de pavão no diário. Ora o pavão significa imortalidade, e ela morreu com 40 anos. Isto é material cinematográfico.’ Sobre o sotaque, encontrou que garantisse que parecia portuguesa e quem contasse que se notava muito – o que dá liberdade a uma realizadora para criar a sua versão. O vento também tem presença no filme. No casamento de Snu com Vasco estava muito vento, mas não tirou o véu. Snu apanhava o cabelo porque em Estocolmo o vento assim obriga. Todos estes elementos ajudam a construir o filme.
Liberdade criativa, sempre. ‘Sei lá se o Sá Carneiro deu aquele poema à Snu. Sei que gostava de poesia e Mário de Sá Carneiro era dos preferidos. A partir daqui eu faço a minha parte’. O mesmo com o escritório de Snu. ‘Sei que a Dom Quixote não era no sítio onde fiz a Dom Quixote. Mas queria elementos que me dessem a arrumação dela. Ela era vidrada na arrumação.’ Ah, a (des)arrumação é importante. ‘É na desarrumação que eu encontro a Snu. Ela estava a ser desarrumada pelas circunstâncias da sua vida. Por que é que há tanta gente a fugir da paixão? Porque ela desarruma-nos.’ No filme, quando Snu está com o cabelo caído, desarrumado, é quando Patrícia mostra a mulher real.
E então o presente que está sempre embrenhado nos filmes sobre o passado? ‘Esta pessoa que está aqui à tua frente fez um filme sobre aquela época. E há coisas que estão exatamente na mesma. O discurso da Maria João Sande Lemos, no comício que eu mostro, podia estar a ser dito na Assembleia da República ainda hoje.’ (A saber: pouca participação das mulheres na vida pública; menores ordenados e piores empregos para as mulheres. Lembra-vos alguma coisa?) ‘No filme vemos a democracia dar os primeiros passos, quando hoje em dia está posta em causa.’
As mulheres têm sempre lugares importantes e protagonismo nos filmes de Patrícia, feminista por ação e convicção, mais do que por teoria. Um contributo (simultaneamente acidental e deliberado) para contar histórias de mulheres, dando-lhes visibilidade e espaço – e encanto. ‘Sou uma realizadora mulher na altura certa de ser realizadora mulher.’ E é com uma tirada verdadeiramente feminista de Patrícia Sequeira que termino: ‘As pessoas tendem a por as princesas num pedestal. Eu tornei Snu numa mulher real.’