“O #MeToo tem feito o que a lei não podia”, escreveu Catharine MacKinnon há cerca de um ano, no New York Times. Reportando-se aos casos de violência sexual que acompanhou durante décadas, a histórica feminista e Professora de Direito descreve que “as queixas eram rotineiramente desconsideradas com uma qualquer versão de ‘ela não era credível’ ou ‘ela queria’”. MacKinnon relata que “tipicamente eram necessárias três ou quatro mulheres a testemunhar que tinham sido violadas pelo mesmo homem e da mesma forma para que a negação dele fosse beliscada”, concluindo que “Isso tornava uma mulher, para efeitos de credibilidade, um quarto de uma pessoa”.
“Ela não era credível” e “ela queria”, ouve-se ainda entre nós, (quase) sempre que uma denúncia é tornada pública, traduzindo a resistência coletiva para acreditar em vítimas e histórias de violência que transgridam um guião hiper-restrito da violação credível. Os mitos da violação, ainda tão presentes na nossa (in)consciência coletiva sobre violência sexual: que as mulheres são apenas violadas por estranhos, em certos contextos e por um certo perfil de agressor. Os mesmos mitos da violação que – um quarto de século depois da publicação do artigo por Martha Burt – Isabel Ventura descobriu presentes e persistentes na cultura judicial portuguesa. Não deve espantar-nos: afinal, quem aplica o Direito é parte do mesmo tecido social de que todas/os fazemos parte, permeável aos discursos e preconceitos prevalecentes.
O movimento #MeToo, que MacKinnon aplaude como tendo “alterado as placas tectónicas da hierarquia de género”, gerou uma avalanche de críticas inflamadas, entre acusações de puritanismo à ideia de uma caça às bruxas que teria tornado o ambiente social hostil aos homens. A par destas, contudo, escutaram-se também interrogações sensatas e desafiadoras, sobre os limites e as exclusões (que mulheres são representadas no movimento?) e os riscos e excessos potenciais. Uma das questões recorrentes prende-se com a presunção de inocência: sendo a presunção de inocência um mecanismo basilar do Estado de Direito, como agir perante tantos testemunhos que surgem anos depois, sem provas que os corroborem?
Parto, pessoalmente, da presunção da verdade dos testemunho de violência sexual – de qualquer testemunho de violência sexual (não esquecendo que os crimes sexuais são esmagadoramente cometidos por homens, contra mulheres). Sendo a presunção de inocência essencial na garantia de proteção da Justiça, sabemos que a Justiça é tantas vezes injusta com as mulheres. Porque o desvalor histórico da palavra das mulheres – “um quarto de pessoa”, para efeitos de credibilidade, nas palavras de MacKinnon – induz um desequilíbrio de partida num confronto de versões ele disse, ela disse.
Esta presunção da verdade de um testemunho não é um ato de fé (como presunção de partida, pode ser afastada perante um qualquer caso concreto). É, em certa medida, um juízo probabilístico: é imensamente provável que os testemunhos sejam verdadeiros. Sabemos que a violência sexual acontece todos os dias, em todos os contextos. Sabemos que as denúncias falsas são absolutamente minoritárias, e que não têm maior ocorrência estatística do que noutros crimes. Sabemos que a baixíssima taxa de condenação contribui para a perceção de impunidade dos agressores. Sabemos que reportar a violência é muitas vezes uma outra forma de violência, e que quem denuncia terá, quase sempre, algo (ou muito) a perder.
Parto da presunção da verdade de quem partilha a sua história de violência, porque os números da Justiça não fazem jus à realidade da violência sexual. Porque a Justiça, mesmo que expurgada dos seus elementos androcêntricos, mesmo se corrigida e melhorada na aplicação tantas vezes preconceituosa da lei, terá sempre limites e mecanismos próprios que nao devem tolher-nos na empatia para com as vítimas. Porque a Justiça tem prazos e procedimentos impossíveis de exigir ou aplicar matematicamente ao tempo vivido das vítimas: o que são seis meses – o tempo possível para formalizar uma queixa crime – depois de uma violação? O que são seis meses para tomar a decisão íntima, dolorosa (e tantas vezes arriscada) de denunciar? O que são seis meses para reconstruir, recomeçar, expor a intimidade ferida ao juízo alheio, tantas vezes cruel? O que são seis meses, num processo íntimo que tantas vezes leva anos, pautado por indecisões, medos, retrocessos e recomeços? O que permitem seis meses para procurar e pedir apoio, admitindo que este suporte existe, acessível e eficaz? O que é possível em seis meses, nos casos tão comuns em que a violência acontece na intimidade, produzindo uma ambivalência impossível de resolver em meio ano? O que é expectável em seis meses, quando a violência acontece em contextos de dependência e perpetrado por figuras próximas?
Dizer que a presunção de inocência vigora de forma absoluta e literal nas relações interpessoais seria dizer que a validade de um testemunho se esgota nestes seis meses, e que nenhuma vítima deveria pronunciar-se para lá desta baliza temporal. Sugerir que o testemunho da violência tem prazo seria uma absurda e violenta judicialização da vida social: porque não existe tempo legal de prescrição do trauma; porque tantas vezes as denúncias acontecem depois de anos de silêncio. Porque nem sempre se produzirá prova – e porque a não produção de prova não é o mesmo que a certeza de que não aconteceu. Porque os critérios de uma condenação e de uma crença pessoal num testemunho não são os mesmos.
Acreditar nas vítimas mesmo sem a exigência de uma condenação não é apelar a uma justiça popular, inflamada e sem freios – tanto MacKinnon como Kamala Harris, Senadora democrata que, perante o testemunho de Christine Ford sobre o ataque sexual cometido décadas antes por Kavanaugh, disse “eu acredito em ti” – são insuspeitas de tal apelo. Significa somente reconhecer os limites estruturais do sistema face à violência sexual e reagir com empatia face aos mesmos. A Justiça exige mais do que a dúvida razoável para uma condenação – mas podemos, em caso de dúvida, acreditar nas vítimas. Com enorme probabilidade, estaremos certos/as. Enquanto a Justiça nos falha podemos, pelo menos, dizer “eu também” – e ouvir de volta “eu acredito em ti”. Fará toda a diferença.
Inicialmente publicámos o texto sem a autoria da imagem. É de Margarida Catela Teixeira, que a tirou de uma das portas de uma casa de banho da Faculdade de Letras. Pedimos desculpa pelo lapso à autora e aos leitores.