Assédio nas redes sociais (e não são as flores e os corações

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Imagem de Isabel Santiago

Deixem-me contar-vos uma história sem qualquer importância mas exemplificativa do pan machismo nacional. Ontem recebi uma mensagem de um homem, que vi acho que uma vez num jantar, no Porto, de um grupo de reacionários que se dizem liberais e levam alguns distraídos inicialmente ao engano (não por acaso, esse jantar tinha para lá uns tantos salazaristas prosélitos a botar faladura). Não me lembro se pessoalmente troquei alguma frase com ele.

Bom, esta pessoa ontem manda-me uma mensagem sobre um post satírico que fiz, aborrecido. E às tantas, casualmente, dava-me a ordem ‘corrija’. E a mim, confesso, ainda me espanta (não devia, eu sei) que em 2019 haja pessoas que acham que podem mandar uma mensagem escrita a uma mulher dando-lhe ordem para fazer o que quer que seja. Se não gosta do que eu escrevo, manda-me alterar.

Isto não deixa de ser um retrato do país machista que temos. Onde um qualquer acha que pode dar ordens a uma mulher, mesmo a uma mulher que nada tem a ver com ele, nada lhe deve e é reconhecidamente uma pessoa assertiva e cáustica. É que não se trata só da falta de educação e da presunção (também se trata, porque a má criação e a presunção neste caso vêm de algum lado) mas de um homem achar que está em posição, porque é homem, de dar ordens a uma mulher, mesmo a uma mulher independente que até escreve profissionalmente e que está longe de caber no papel de submissa.

O paternalismo e o autoritarismo, que vem a certos homens naturalmente, quando não a hostilidade declarada, em se tratando de lidar com mulheres, bom inicialmente põe-nos a pensar ‘mas é doido alucinado?!’ mas, de seguida, faz-nos dar conta da realidade feia. Não é disfuncionalidade. São pessoas que consideram que as mulheres, pelo seu sexo, são pessoas menores, menos capazes, podem ser tratadas como crianças. As pessoas inteiras – os homens – são uns fofinhos por nos informarem o que devemos fazer e dizer (com agressividade nos casos em que nós somos particularmente desnaturadas), que nós sozinhas não nos governamos. Então, se até nos informam caridosamente como devemos ser feministas. Gestos aparentemente pequenos mas que revelam toda uma visão tóxica e machista do mundo.

E depois, quando falamos de machismo endémico é claro que a histeria é nossa. Isto é claramente um divino machista supondo que, como homem, tem o privilégio de me dar ordens. Mas ele, que me escreve a importunar-me e a dizer-me o que fazer, é evidentemente não machista. Não se pode nunca dizer isto. Já não há machismo. É isso e racismo. Eu é que sou uma histérica e uma cabra que lhe responde. Ah, e não esquecer que as mulheres têm de aceitar as canalhices masculinas caladas e sorridentes. Quando ripostam, ou meramente descrevem o que aconteceu. são elas, afinal, quem ofendeu e agrediu.

E sabem que mais? Estes casos – porque este foi clarinho, com a ordem lá escarrapachada, mas há inúmeros casos de pessoas que me contactam, conhecidas e desconhecidas, como se eu tivesse obrigação de lhes dar alguma satisfação pelas minhas opiniões ou pelo que escrevo – incomodam-me francamente mais que o assédio de rua, para o qual tanto barulho se faz. Se não há ordinarice, ameaça ou alusão sexual, ouvir um ‘oh boazona’ ou ‘bom dia princesa’ é bastante mais inócuo do que este assédio a que as mulheres estão sujeitas nas redes sociais – porque o assédio com propostas e flores e snoopys pode ser facilmente terminado.

São incontáveis os casos que se passaram comigo de homens, perfeitamente desconhecidos provavelmente até em sua casa, que se me dirigem no facebook ou twitter como se fosse prerrogativa deles calar-me. E que claramente, pelo tom hostil ou peremptório, julgam que eu, à boa maneira das mulheres tradicionais, vou amochar e aceder e calar-me. Também vejo isto, em abundância, no facebook e no twitter de amigas. E quanto mais destacadas, mais sucede – porque por cá não se sabe lidar com alguém que chama a atenção e se for uma mulher, bem, os circuitos fundem todos.

Mas isto que relato é assédio. E é uma tentativa de impor a ordem masculina em mais um espaço público: as redes sociais. (De resto é conhecido como as mulheres são alvo de mais insultos, e mais sexualizados, e maior perseguição nas redes sociais.) E deve ser denunciado e nunca relativizado. Porque o comportamento que vejo da maioria das mulheres é o mesmo do assédio de rua grosseiro: fingir que nada se passou, não confrontar, não responder. Afinal nunca queremos ser nós a parecer umas harpias, por não?

Pois pareçamos. Os homens machistas contam sempre com o silêncio das mulheres – sejam nos assuntos pequenos, mas que pretendem constranger a nossa liberdade, sejam nos casos de violência extrema. Temos de ripostar e expor os comportamentos. Até os homens que acumulam os cromossomas xy com o machismo aprenderem a não importunarem nas redes sociais mulheres desconhecidas e passarem a dar ordens às flores que cultivam na varanda.

Porque há homens que claramente têm de aprender a lidar com mulheres nos espaços públicos. E porque o sexismo à solta nas redes sociais é um ótimo caldo de fermentação, e de legitimação (ora: o mundo é assim, está à vista de toda a gente que visite as redes sociais), de ataques mais ferozes às mulheres. Desde a violência dos incels, à violência sexual e doméstica (que é tão acarinhada por tantos homens – e mulheres – nas redes sociais), aos populismo machistas (nunca devemos esquecer que o modus operandi do trumpismo nasceu de uma perseguição no twitter).

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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