Corpo de mulher

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Imagem de Isabel Santiago

“Ana tem 20 anos, é de estatura baixa e muito magra. Pinta o cabelo de louro – diz que assim chama mais homens a si. No colégio era uma menina reservada, embora até fosse tendo alguns namoricos. Veste-se bem. Roupa da Guess, e muito bem pintada. É bonita, tem o ar nórdico. Há pouco tempo alugou um T4 com 3 amigas, daquelas que se fazem nesta vida, explica, para termos mais privacidade e mais higiene e mais proteção. Atendem clientes à mesma hora, e nunca ninguém fica sozinha no apartamento. Têm um código, que não me revela. Conta-me que começou “nesta vida” porque queria estudar e os pais não têm condições. Em casa, em Bragança, todos julgam que ela é empregada na Bershka. Costuma ir a casa de 3 em 3 meses. O fim-de-semana é quando rende mais. Durante a semana há pouca clientela, refere. Dá várias utilidades ao apartamento que alugou com as colegas, serve para trabalhar e para estudar, nas horas em que não atende. Tem outra casa para viver, paga com o dinheiro que faz na prostituição.

O primeiro cliente ficar-lhe-á marcado na memória para sempre. Lembra-se da cara, do corpo, do cheiro e de como a tratou. “Eles percebem logo que estamos verdinhas e começam a romancear o tratamento. Tentam ser carinhosos.”. Se fossem carinhosos não recorriam a ela, diz-me em tom de desabafo. “Gosto de homens, quer dizer sou heterossexual, mas já me provocam nojo. Desculpe usar esta palavra tão forte, mas é isto mesmo que provocam”.

Tem um corpo de menina, diz que não lhe atribuem mais de 14 anos, mas nunca foi impeditivo para nada, refere de lágrimas nos olhos. “É mau, muito mau, passamos noites sem dormir”.

Diz-me que tem medo. Que um dia um cliente a seguiu. Que fez queixa na policia, mas de nada lhe tinha servido. “És puta, isso faz parte.”, foi a resposta. Sentiu-se lixo. Pior que lixo. Diz-me que só se irá prostituir enquanto estiver a fazer o curso. É boa aluna. Está a fazer o curso de medicina. Espera vir a ser investigadora na área do cancro. Perdeu uma irmã gémea com leucemia. “Era igual a mim. Tenho a certeza de que ela me recriminaria.”

Esta vida tem prazo de validade, 7 anos. É duro, mas Ana diz-me que se não se prostituísse não era capaz de fazer este curso. Quer muito ser médica. É esse o motivo que a faz ser prostituta.

Fica ansiosa, de repente, tem uma marcação às 16 horas, num dia de semana, “muito raro”, desabafa, e ainda tem de se arranjar. O discurso da Ana é muito rápido, como toda a vida dela. Tem de ser assim, tem de ser assim, senão penso no que ando a fazer. Obrigada, tenho de ir “

A violência a que esta, e outras, mulher se encontra exposta, na prostituição, é uma forma de exploração, o seu corpo é explorado. Esta relação mercantil em que se troca dinheiro pelo prazer sexual é um espaço de opressão das mulheres. A prostituição é uma forma de escravatura, encapuzada na romantização da liberdade de escolha das mulheres. Poucos existem que pretendam abolir a prostituição. Muitos há que a querem regulamentar. Torná-la legal. Como na Holanda. Dizem-me baixinho que as mulheres são livres de fazer o que bem entenderem! Este discurso pró-regulamentação reforça a visão do grupo dominante – os homens.

 O sistema patriarcal dá-lhes o poder. Conseguiram fazer-nos crer que as relações de dominação são fruto da biologia: a suposta sexualidade masculina viril e insaciável, frente à passividade da sexualidade feminina. O desejo é dos homens, o corpo para satisfazer esse desejo, das mulheres. Porque há homens que querem fazer sexo com quem não os deseja? Porque há homens que pensam que podem pagar o consentimento? Porque há homens que se sentem bem com a fragilidade das mulheres?

A prostituição não é um trabalho como outro qualquer, nem tão pouco é trabalho. É violência sobre a mulher e sobre o seu corpo. Não deve ser regulamentada. Deve ser abolida. Simples, assim. Devemos, enquanto sociedade progressista, criar condições para acolher estas mulheres – vitimas da cultura patriarcal – e reinseri-las no mercado de trabalho. Quem pretende que continue a existir prostituição é quem lucra com ela: clientes, proxenetas, donos de casa de prostituição, etc. À mulher cabe ter relações sexuais com quem não deseja. O consentimento não se compra. Por muito que a mulher diz que está a prostituir-se por vontade própria, basta-nos 1 hora de conversa com estas mulheres para perceber que foram empurradas para a prostituição.

Empurradas por quem? A resposta a esta pergunta é simples. A prostituição tem um carácter patriarcal, e considerar esta exploração não me faz considera-las menos mulher que eu. Não me venham dizer que estou a ser moralista ao dizer que a prostituição deve ser abolida. Não estou. A prostituta é estigmatizada. O cliente protegido. Estranho, não? O patriarcado é estruturado a partir do controlo dos homens sobre as mulheres: trabalho, corpo e sexualidade. Também na prostituição isto acontece. São os homens quem controla a mulher prostituta. Na maior parte dos casos existe um proxeneta. Até mesmo em casas geridas por mulheres, que têm prostitutas a trabalhar, o pouco dinheiro que recebem vai para o namorado, ou marido, ou coisa que o valha.

Anda tudo à volta da sexualidade e da forma como a mulher lida com esta toda a vida.  A sexualidade é uma construção social. A relação de meninos e meninas com o corpo é diferente. Os meninos são muito mais estimulados ao desejo e as meninas são inibidas. Quantas mulheres dizem que gostam de ter relações sexuais? Ao passo que nos homens, na maioria, isso é algo corriqueiro. A mulher sempre foi menos que o homem. Existe um código de honra: o típico machão! E ai do menino que não começa a desenvolver características de macho logo aos 6 anos! As meninas querem-se recatadas.

Haja educação sexual nas escolas, de pequeninos, para aprenderem o seu corpo.

Numa sociedade onde predomina a lógica patriarcal em que a mulher é menos que um homem, a prostituição é o expoente máximo dessa dominação, onde o homem impõe o seu desejo. E aposto convosco que a maioria dos homens nem pensa no que está a fazer quando recorre a uma prostituta. Quem nunca ouviu dizer: “Recorreu à prostituição porque a mulher não lhe dava sexo”?

Em termos psicológicos, em que estado pensam encontrá-las? Eu digo: apáticas, tristes, com ideação suicida, algumas já tentaram mesmo o suicídio. Mas regulamentar é que faz falta! Vai alterar em tudo este estado. A investigação sobre o impacto psicológico relacionado com o trabalho sexual revela desenvolvimento de stress psicológico, bem como o aparecimento de perturbações depressivas, perturbações de stress pós–traumático, sintomatologia ansiosa e perturbações aditivas no âmbito do consumo de substâncias, ansiedade, hostilidade, ideação paranóide e psicose. Basicamente são os mesmos sintomas que podemos encontrar em vitimas de violência prolongada.

Como feminista, à descoberta do que é o feminismo, considero que a prostituição assenta num domínio sexual dos homens sobre as mulheres, à custa das mulheres, e provocando consequências nefastas sobre as mulheres. A prostituição é uma desigualdade de género. Não há mulher que queira ser vitima de um homem. Não há mulher que queira ser prostituta. E isto não é ser moralista. É ser mulher.

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