Dois políticos, dois escândalos diferentes. Ou iguais?
No primeiro, o actual governador do estado federal americano da Virginia confessou ter pintado a sua cara com graxa, numa festa nos tempos da faculdade.
No segundo, o homem na linha de sucessão directa para substituir o primeiro, viu agora aparecerem contra si alegações de abuso sexual de há mais de uma década atrás.
É pacífico que blackface é ofensivo para as pessoas negras e tem uma carga cultural, política e social que vai muito para além da pintura da cara. Mas até que ponto é um acto consciente de racismo? Racismo é um crime de ódio, mas blackface não preenche o tipo legal desse crime. Não será antes uma piada de mau-gosto, uma acção irreflectida de alguém com péssimo sentido de humor e uma óbvia falta de empatia e sensibilidade?
A conferência de imprensa que o Governador Northam deu para explicar o escândalo foi um sem-fim de gaffes tão embaraçosas que nos perguntamos como é que aquela pessoa foi eleita para um cargo público (mas depois lembramo-nos de Trump e engolimos em seco). Pessoalmente, penso que ele se deveria demitir só por causa da conferência, nem precisamos de nos debruçar sobre a sua imbecil decisão na juventude de pintar a cara com graxa.
Mas um país inteiro exige a sua demissão por esta última razão. Porque a verdade é que o racismo – e qualquer acto que possa ser visto como ofensivo para a população negra – é fortemente condenável e condenado. E ainda bem. Porque o racismo é uma monstruosidade desumana que jamais deverá ser tolerada, minimizada ou desculpada. Todos conhecemos a história negra, os séculos de escravatura, opressão e discriminação. A batalha americana pelos direitos civis, iniciada há algumas décadas atrás, está longe de estar ganha quando analisamos estatísticas de rendimento per capita, nível de escolaridade, carreira, saúde, habitação e violência sobre a população negra. Ainda há um longo caminho a percorrer para que esta população tenha a representatividade que merece, por isso é positivo confirmar que o racismo é socialmente intolerado nos EUA.
Agora chegou a altura de fazer o mesmo com o sexismo.
As mulheres estão exactamente na mesma situação, com a agravante de sermos a maioria nas universidades há vários anos, e com melhores resultados académicos, mas continuarmos sub-representadas nas estruturas de poder político e financeiro.
Somos também a esmagadora maioria das vítimas de crimes sexuais, de violência doméstica, de homícido conjugal e de discriminação sexual.
Perante estas estatísticas, é inegável que as mulheres continuam a ser uma classe oprimida e vitimizada. Mas, por alguma razão, o sexismo continua a ser pacificamente tolerado e socialmente muito melhor aceite que o racismo. Ora vejamos:
Um país que elegeu um homem negro como Presidente, duas vezes, antes de eleger uma mulher para esse cargo, preferindo antes eleger um auto-confesso agressor sexual, é o país que agora se choca com o blackface mas apela à cautela e prudência perante acusações graves e credíveis de violação, não exigindo a demissão do acusado.
Sexo oral forçado é crime, pintar a cara com graxa e ir a uma festa não é.
Que dupla moral é esta? Como é possível esta onda de indignação em uníssono contra uma acção que nem obviamente racista é, em concomitância com um silêncio chocante sobre algo tão sério e tão grave como um crime de violação?
Como podem os Democratas, em consciência, ignorar a Dra. Vanessa Taylor, depois de terem usado a Dra. Blasey-Ford como bandeira contra a violência sexual e contra o mito das falsas acusações?
O que separa a Dra. Taylor da Dra. Ford? Absolutamente nada. São ambas mulheres fortes e independentes com testemunhos altamente credíveis, que nada têm a ganhar com a denúncia pública dos crimes de que foram vítimas, e tudo a perder. Se formos sinceros, sabemos que ambas dizem a verdade. Paremos de actuar como juízes criminais, que não somos, e deixemos o due process onde ele reside: no sistema judicial. Paremos por isso de encher a boca com palavras caras como presunção de inocência. Com a informação que temos dos dois casos, lendo os testemunhos escritos das duas mulheres, temos dados suficientes para tomar uma posição informada e saber que quem mente são Brett Kavanaugh e Justin Fairfax. Percebe-se que o façam: têm tudo a ganhar e nada a perder com a mentira, ao contrário das mulheres que violaram ou tentaram violar.
Dizermos que acreditamos na Dra. Taylor e na Dra. Ford, posicionarmo-nos ao seu lado, não significa que violemos o princípio da presunção de inocência nem tem como consequência mandarmos estes dois homens para a prisão sem um processo penal justo. Não nos compete a nós, público, julgar criminalmente estes homens. Mas podemos e devemos julgá-los na praça pública porque é lá que eles actuam. A partir do momento em que desempenham cargos públicos, o público tem o direito de se pronunciar. E tem o dever de exigir a demissão de ambos desses cargos, porque não são homens aptos para o seu exercício.
No caso concreto de Justin Fairfax, é infinitamente mais grave o seu comportamento, que preenche o tipo legal de um crime sério, punido nos EUA com uma pena de décadas de prisão, que o do actual governador. Mas o que mais comoção e ira em massa provoca é o blackface. Porque teme a sociedade ser percebida como potencialmente racista mas não tem o menor problema em ser abertamente sexista? O blackface é idêntico ao drag – homens mascarados de mulher, exagerando todos os estereótipos femininos e fazendo do nosso sexo uma caricatura para entretenimento. No entanto o drag é elogiado e até ensinado nas escolas e o blackface é equiparado aos piores crimes sexuais embora nem criminalizado seja.
Mas Justin Fairfax não se vestiu de mulher, nem pintou a cara com maquilhagem excessiva (ao invés de graxa): ele violou uma mulher, de acordo com o testemunho credível da mesma. Tem de se demitir de imediato e é aberrante que a sociedade e, em especial o Partido Democrata em peso, não exija a sua demissão. O facto de continuarem a exigir a demissão do Governador Northam é ainda mais aterrador.
Entretanto, para realçar o absurdo do que se passa neste momento no estado de Virginia, o número 3 (democrata) na linha de sucessão para o cargo de governador e o principal republicano do estado, ambos confessaram terem usado blackface na sua juventude.
Chega de dois pesos e duas medidas para racismo e sexismo. São ambos flagelos igualmente errados, cruéis, desumanos e têm de ser erradicados.
A questão é que a escravatura foi abolida há mais de 150 anos nos EUA, pelo que levamos quase 2 séculos de avanço na condenação do racismo – pese embora todas as vítimas que o mesmo fez nesse período e ainda faz. Mas recordemos as vítimas do sexismo, do machismo, que continua a matar todos os dias e que ainda não foi abolido, por isso temos séculos de atraso até a situação das mulheres começar a melhorar. As mulheres e crianças continuam a ser objectificadas, vários milhões traficadas, comercializadas, usadas como força laboral não remunerada e como objectos sexuais. Não é à toa que se chama à prostituição a escravatura branca. Porque enquanto continuarmos a ver as mulheres e crianças como seres menores, diferentes de nós, para serem usadas e abusadas, a escravatura continua viva e legalizada. Temos de abolir a prostituição e o trabalho emocional não remunerado como abolimos a escravatura há séculos atrás. E temos de abolir o racismo e o sexismo, porque são duas faces da mesma moeda.
Se vemos a evolução da nossa sociedade como a conquista progressiva da dignidade humana, temos de acreditar que conseguiremos criar uma sociedade livre de racismo e sexismo. Porque é possível.