1946

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Imagem de Isabel Santiago

1946

Estamos em 1946, no Estado Novo, acabados de sair da 2a Guerra Mundial e Simone de Beauvoir tem 38 anos. Faltam 3 anos para publicar “O Segundo Sexo”, um tratado  fundamental do feminismo contemporâneo, onde refere questões ligadas à opressão e à independência feminina na sociedade. Em Fevereiro de 1946, Juan Domingo Perón, é eleito presidente da Argentina. Com ele trouxe o maior mito da América Latina, Evita Péron, sua companheira. Nascida a 1919, Eva protagonizou uma ascensão rápida na vida pública: tornou-se uma das mulheres mais importantes e poderosas do mundo. Para muitos, Eva Perón foi a única que ecoou no coração do povo pobre e trabalhador da Argentina. A 14 de Junho de 1946 nasce Trump. O mais contestado presidente americano, e o menos feminista possível. Tudo o quanto são frases anti-feministas, já foram ditas pelo presidente da enorme potência mundial que são os EUA. Desde o “I Grab Women “By The Pussy”, a “Agora temos um negro na presidência, depois vai vir uma mulher, em seguida deve vir um gay, e depois com certeza um hamster, do jeito que vão as coisas”, a “Se Hillary não pode satisfazer seu marido, o que a leva pensar que pode satisfazer a América?“.

O mundo vivia um corrupio, em 1946, com o final da segunda guerra mundial e em Portugal, na mesma altura, no Estado Novo, a generalidade das pessoas vivia mal, numa ditadura imposta por Salazar. Enquanto milhares passavam necessidades, poucos viviam rodeados por luxos.

As mulheres são as primeiras a sentir o retrocesso e as dificuldades. Se a maioria vivia mal, imaginem as mulheres! A mulher casada foi premiada com as tarefas domésticas, com a justificação de que concorrer com o homem no mundo laboral traz a perda da instituição da família. À mulher falta o ânimo forte do homem, e por isso tem de se remeter à condição de sexo fraco. O homem tem assim a função superior de gestão do casal, sendo que a sua vontade supera a da mulher, que terá assim de acatar o patriarcado. Pelo bem do casamento e dos filhos, claro está.  O marido deve proteger a mulher, que assim vive longe dos perigos mundanos. Este dever implica que todas as relações sociais da mulher, as viagens, e a sua reputação, prevenindo assim o escárnio e o maldizer que existiria se o homem não tivesse este dever. Deverá escolher se a mulher toma ou não a pílula e até condená-la se achar a sua saia curta.

Que felizes que somos todas, livres da maldade da sociedade, com um homem que é não só nosso marido, mas também nosso dono! Nós somos uma mercadoria. Quem nunca sonhou sê-lo? Agora mulheres a querer a independência e a autonomia…

Em 3 anos seria escrito um livro essencial do feminismo. Em 3 anos a autora teria ordem de marcha para a fogueira da sociedade. Simone de Beauvoir irá abordar a condição da mulher em todas as suas dimensões: sexual, psicológica, social e política. Coisa impensável para a mulher portuguesa, que se vê como um cãozinho nas mãos do seu dono: o marido. 

Mas em que ano estamos? 2019? As coisas já evoluíram? Que me dizem? Disparate o meu, que me perdi no tempo, já estamos em 2019! Que raio, como as coisas mudaram. Ou será que não?!  Em 2019 uma mulher, ainda não será bem uma mulher, na verdadeira ascensão da palavra.

Em 2019, só em 2019, já morreram 9 mulheres às mãos dos companheiros/ex-companheiros. Ouço por aí (e leio por aí), “se ele era agressivo, então porque ainda estava com ele?”. Claramente quem diz qualquer coisa assim não perceber nada de violência doméstica. Nestes casos, a mulher ainda é uma coisa, um objeto de pertença de um homem. Crimes passionais, dizem. Atentados terroristas, digo.

É um atentado. Pensei em colocar “E se fosse um atentado terrorista?” no título, mas é mesmo um atentado terrorista. De homens, contra mulheres, que não têm saída. Se tivessem tinham saído. Ou parece-lhes que alguém se atira para a boca do leão de livre vontade? E não têm mesmo saída. Ninguém diga “desta água não beberei”, porque de hoje para amanhã as coisas mudam. Olho bem aberto. Ouvidos bem abertos. E nisto só as vitimas – as mulheres – sabem. Só elas saberão. Só cada uma de nós saberá e nem todas têm a mesa resiliência, a mesma coragem, e está tudo bem. Apetece-me dizer coisas muito feias de cada vez que leio noticias do género “Mulher morta pelo companheiro”.

Imagine-se, porventura, a existência de um atentado no Terreiro do Paço. Atentado terrorista. Daqueles perpetuados por alguém do ISIS. Jornalistas, criminologistas, especialistas de tudo e mais alguma coisa, apareciam como cogumelos. Era preciso segurança, mudar as leis, fechar fronteiras, policiamento, estudos, etc, etc, etc. Mas como estes crimes são contra as mulheres, a coisa vai andando assim. Não podemos fazer nada, não conseguimos fazer nada.

E se fossem 9 médicos assassinados?

E se fossem 9 jornalistas assassinados?

E se fossem 9 enfermeiros assassinados?

E se fossem 9 militares assassinados?

E se fossem 9 homens assassinados?

Vamos fazer como diz o hino? Vamos marchar contra os canhões? De que estamos à espera? Quantas mulheres precisam de morrer? Quantas mulheres têm de dar o corpo às balas? Quantas dessas mulheres irão sob o nosso silêncio? As mulheres são mais propensas a serem vítimas por alguém com quem partilham a intimidade, e isto não só é triste, como é revoltante!

Já não estamos em 1946, mas parece.

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