Viver com frio

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Sou uma pessoa friorenta. Não sei se é alguma tendência genética, se de ser (fora os períodos posteriores às gravidezes em que, enfim, nem é bom lembrar o quanto engordei) uma compradora do tamanho 36 (ocasionalmente 34), se a minha tendência para, como em tudo na vida, gostar de conforto também nos graus centígrados. Além disso, é sabido que as mulheres têm metabolismos menos frenéticos que os homens, donde, são mais friorentas. O resultado é que tenho sempre a minha casa quente no inverno (bendito aquecimento central, uma das melhores invenções da humanidade).

Sou das pessoas que gosta da sabedoria dos povos do norte da Europa em tocando à temperatura do lar doce lar. Em casa é para andarmos com roupa leve e sem estarmos atafulhados de camisolas e casacos de malha. Uma manta para o sofá aceita-se, mas andar pela casa enchouriçada em numerosas camadas de roupa, devidamente obrigada mas não. Voltando ao pessoal do norte da Europa. Gosto como andam em casa de jeans e t-shirt e descalços, ou com sapatos sem meias, mesmo quando no exterior neva e o ar parece ter sido tele transportado do Ártico (ou do Antárquico, o que calhar estar mais gélido). Roupa leve na habitação: é o mais confortável, o mais sensual e traz aquela informalidade acolhedora que se espera do estar em nossa casa.

Nunca entendi por que razão os meus compatriotas não me acompanham neste hábito. (Ou entendo em alguns casos; já lá chego). Por cá as pessoas gostam de ter frio. Acham normal ter frio dentro de casa. Há outras causas (mais, nos parágrafos abaixo) mas em primeiro lugar há que reconhecer que o frio é uma questão cultural em Portugal. Não sei, parece uma espécie de prova de que afinal somos rijos (já que não podemos provar de forma mais meritória). É de bom tom ter as casas pouco aquecidas. Casas quentes e confortáveis só para dandies e senhoras delicadas e fracas. Vai-se a um hotel no inverno e, tirando poucos casos de hotéis de luxo, os quartos estão vergonhosamente frios. As casas de campo e de fim de semana são um pavor de desconforto nos ditos fins de semana (de inverno). Temos a pancada das lareiras, ai que bonitas e tradicionais – mas são ambientalmente péssimas e terríveis na hora de aquecer habitações. (Bom, eu gosto mesmo muito de uma boa lareira. Mas por questões estéticas, evidentemente, que têm a sua importância mas, lá está, não conseguem ser apreciadas quando estou transida de frio.) As casas de semana, onde as pessoas vivem habitualmente, estão parcamente aquecidas.

Não deixo de considerar que é uma questão de (falta de) patamar civilizacional. A busca do conforto é uma conquista civilizacional. E nós, país pobre, ainda não chegámos lá. É mais ou menos como a calçada portuguesa: é horrorosa (exceto em meia dúzia de locais dos centros da cidade), não é uniforme, cheia de altos e baixos ótimos para os passantes caírem e torcerem os tornozelos, está permanentemente mal mantida e com pedras soltas, ervas daninhas crescem no meio, é escorregadia quando está molhada (e quedas e fraturas), custa imenso (pelas irregularidades) andar com carrinhos de bebé ou de supermercado, e, para cúmulo, é caríssima. Mas é uma vaca sagrada nacional porque, enfim, as pessoas nasceram com passeios com calçada portuguesa e deus nos livre de mudar.

Estamos portanto mais ou menos como Inglaterra nos anos 1930 e 1940, quando Nancy Mitford escrevia que as casas senhoriais britânicas eram edifícios construídos para convencerem todos os habitantes e visitantes a correrem a caçar raposas no exterior, de tão frias e desconfortáveis eram os espaços interiores. Há outros fatores, já disse, mas sim, esta mania conservadora portuguesa tem um grande peso.

Ok, os outros fatores. O preço da eletricidade, claro. Portugal é o terceiro país da UE com a eletricidade mais cara, logo a seguir à Bélgica e à Dinamarca (que têm, nem preciso referir, rendimentos per capita significativamente superiores ao português). Também no gás natural estamos em 3º lugar para o mais caro, a seguir à Suécia e à Irlanda (faço as mesmas considerações sobre diferencial de rendimentos).

A conclusão não é difícil: muita gente não tem dinheiro para pagar o gás ou eletricidade para aquecer as casas. E se às questões culturais podemos torcer o nariz, perante esta deficiência económica já somos impelidos a outras ações. É que os preços são caros – sobretudo no caso da eletricidade – porque temos o segundo maior nível de impostos e taxas da UE, logo depois da Dinamarca. Os impostos e taxas sobre a eletricidade chegam a mais de 50% da fatura total. Em Portugal, a eletricidade paga a taxa de IVA máxima (como se não fosse um bem de primeira necessidade – ou porque é, assim o estado arrecada muita receita fiscal), e é uma taxa de IVA também altíssima comparativamente.

Outro fator: mau isolamento térmico das casas. Temos um clima temperado, pelo que sempre vimos o isolamento térmico como uma excentricidade de gente fraquinha das cidades que viajou demasiado e viu coisas boas para os estrangeiros mas desnecessárias por cá. Os materiais de construção nem sempre são os melhores (há pouco dinheiro para gastar nisso), muita gente faz as suas próprias construções (sem os devidos conhecimentos técnicos), os hábitos culturais não pedem um bom isolamento térmico. O problema agrava-se nas casas antigas, inclusive nos centros das cidades, onde as caixilharias de madeira oferecem péssimo isolamento – mas os arquitetos e os responsáveis camarários preferem que as pessoas (geralmente mais pobres, sem dinheiro para uma reabilitação profunda que troque as caixilharias por coisas modernas com bom isolamento) vivam arrepiadas de frio, que autorizar que se mude para caixilharias de metal, mesmo havendo espécimes já esteticamente agradáveis.

Há consequências graves do hábito de vivermos com frio e não termos as casas suficientemente aquecidas. Não é um desconforto inócuo. Quando votarmos no próximo outono devemos lembrar-nos disto.

 

 

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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