Publicidade e prostituição: o duplo padrão da crítica

0

O crescente debate sobre prostituição revela fraturas e colisões no feminismo, já o sabemos. De um lado, as propostas abolicionistas, que abordam a prostituição num sistema mais lato de violência sistémica contra as mulheres; do outro, as propostas de regulação ou legalização, ancoradas sobretudo em discursos de autonomia das/os agentes na prostituição e combate ao estigma que a envolve. Apologistas da regulação citam com frequência o modelo neozelandês, país que em 2003 descriminalizou a prostituição, por vezes acusando de “moralismo” as defensoras do modelo nórdico. Ora, se a discórdia é expectável no feminismo, movimento plural com diversas correntes e momentos históricos, a acusação de moralismo parece-me colidir com outras demandas e lutas feministas, geradoras de muito maior consenso. Refiro-me, aqui, ao que me parece um duplo padrão de crítica a manifestações de sexismo, concretamente entre publicidade e prostituição.

No excelente documentário Killing Us Softly 4, Jean Kilbourne apresenta e analisa dezenas de imagens publicitárias, dissecando os mecanismos da publicidade sexista e problematizando os seus efeitos. Numa viagem visual pelos anúncios das últimas décadas, Kilbourne demonstra como a publicidade é promotora de padrões de beleza ditatoriais e absurdos, crescentemente irrealistas e penalizadores de todos os corpos dissidentes. A mensagem, repetida imagem após imagem, é de que o valor das mulheres se centra na sua beleza, e que esta se restringe à juventude, à magreza e à pele clara. “O meu namorado disse-me que me amava pelo meu intelecto. Nunca me senti tão insultada na minha vida”, lê-se num dos anúncios apresentados no documentário. Reduzidas a corpos, as mulheres são descentradas da sua própria sexualidade, representadas sobretudo como objeto de desejo.

Kilbourne refere como os corpos das mulheres surgem constantemente fragmentados nos anúncios – focam-se as nádegas, os seios, as pernas, oculta-se o rosto -, e como as mulheres negras são tantas vezes fotografadas em cenários exóticos, como que em simbiose com o ambiente – “como se elas próprias fossem animais exóticos”.

ad-17
Imagem 1: Anúncio apresentado no documentário Killing Us Softly 4

Este universo visual povoado de imagens de corpos femininos, fragmentados e digitalmente manipulados, tornados acessórios publicitários a todo o tipo de produtos e em todo o tipo de campanhas, contribui para um ambiente normalizador da subalternização das mulheres. A exposição contínua e cumulativa a imagens sexistas cria um “ambiente cultural tóxico”, nas palavras de Kilbourne, argumentando que a objetificação é mecanismo basilar da desumanização. A objetificação reiterada veiculada pela publicidade cria um ambiente facilitador de dessensibilização generalizada face à violência contra as mulheres, sobretudo quando a violência contra as mulheres surge erotizada nas imagens publicitárias.

dolce-gabbanaa
Imagem 2: Anúncio apresentado no documentário Killing Us Softly 4

No contexto do atual debate sobre prostituição, julgo ser útil revisitar as palavras de Kilbourne e as imagens que as suportam, porque as manifestações de sexismo expostas em Killing Us Softly 4 não se esgotam na publicidade: são transversais a tantas representações sociais e surgem extremadas nos anúncios de sexo comercial. Restringindo os exemplos ao universo neozelandês, tantas vezes elogiado, é fácil encontrar anúncios que publicitam mulheres como “as nossas raparigas”, esmagadoramente dirigidos (sem surpresa) a um cliente masculino:

 “… nós oferecemos uma variedade de mulheres bonitas, de adolescentes a mulheres maduras. Louras, morenas, ruivas, altas e com pernas longas, baixas e de aparência infantil, curvilíneas ou atléticas, de pele clara ou escura, de peitos grandes ou pequenos!!! Há mais de 120 mulheres lindíssimas para escolher”.

Anúncios construídos para um público masculino e que apelam a uma construção da masculinidade dominante, para quem o prazer sexual e a beleza femininas são publicitados como paliativo para o cansaço do trabalho: “Quando a vida te põe para baixo e o trabalho dá dores de cabeça, todos merecemos uma pausa de vez em quando. Oferece-te algum tempo com uma (ou mais) das nossas bonitas acompanhantes. Tu mereces!”). Anúncios que capitalizam a objetificaçao feminina, como é o caso do bordel sugestivamente denominado Femme Fatale, que anuncia dispor de “uma seleção de elite de mulheres bonitas de diversas etnias, tipos de corpo e cores de cabelo com personalidades cativantes para excitar e satisfazer todas as tuas necessidades”, terminando com o sugestivo repto “abraça os teus instintos masculinos”. Anúncios que repetem à exaustão imagens de corpos fragmentados, que promovem a ideia de que as mulheres valem pelo seu capital erótico – tão mais elevado quanto conforme a juventude, o tipo de corpo e a pele clara. Anúncios que revigoram ideias profundamente estereotipadas sobre a sexualidade das mulheres, como a descrição de Lacey – apresentada como “estudante durante o dia”, “loura, peituda e muito marota”, e descrita como personificando o slogan “Uma lady na rua, uma maluca no quarto”.

Perante a evidência do sexismo que perpassa os anúncios de bordéis na Nova Zelândia, é impossível não estabelecer paralelos e colocar um rol de interrogações: como podem as mesmas construções imagéticas, linguísticas e simbólicas receber tratamento tão diferenciado? Como pode a análise crítica feminista sobre a publicidade deter-se perante o sexismo gritante nos anúncios de sexo comercial? O que justifica que censuremos como sexista um anúncio a uma marca de hambúrgueres com a alusão clara a sexo oral (imagem 3), mas que a promoção do sexo oral como serviço (imagem 4) – num enquadramento visual tão ou mais objetificante – passe incólume?

bk
Imagem 3: Anúncio apresentado no documentário Killing Us Softly 4
blowjob
Imagem 4: Imagem ilustrativa de sexo oral (“blow job”) no website de um bordel em Auckland, Nova Zelândia

O que justifica que censuremos a coisificação das mulheres nos anúncios, mas suspendamos a crítica quando os anúncios promovem não um qualquer produto, mas o próprio acesso ao corpo das mulheres? Em que outro contexto – publicitário, comercial – a crítica ao apelo “abraça os teus instintos masculinos” passaria por moralista? Como desconstruímos estereótipos de género nocivos quando a indústria do sexo os capitaliza? E como podemos, em coerência, criticar a exotização das mulheres negras na publicidade, enquanto simultaneamente normalizamos retóricas que publicitam sexo com uma “adolescente negra” – “Uma jovem de pele escura para passar o tempo”? Como combatemos a erotização da violência veiculada pela publicidade sexista, e simultaneamente normalizamos anúncios como “Experiência de Estrela Porno” – descrita como “mais energética e muito mais atrevida” do que a experiência padrão, mimetizando alguns dos atos simbolicamente agressivos da pornografia mainstream (como palmadas, puxar cabelos, ejaculação no corpo (COB – “come on body) e na cara (COF – “come on face”) das mulheres?

Há, considero, uma insanável contradição nesta abordagem que silencia a crítica ao sexismo quando enquadrado no contexto da prostituição, precisamente quando ele é extremo e estrutural. Rotular a crítica à objetificação das mulheres como retórica moralista colide com tantas reivindicações e conquistas feministas, em esferas tão diferentes como a sexualidade, o trabalho e as representações nos media. Não, não é um moralismo bacoco que nos faz combater a ideia de “instintos masculinos” – é a certeza de que outra masculinidade é possível e urgente. E, se a pretensão tão feminista de viver livre de sexismo é moralista, então eu, moralista, me confesso.

Deixe um comentário. Acreditamos na responsabilização das opiniões. Existe moderação de comentários. Os comentários anónimos ou de identificação confusa não serão aprovados, bem como os que contenham insultos, desinformação, publicidade, contenham discurso de ódio, apelem à violência ou promovam ideologias de menorização de outrém.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.