Juízes, violações e o Holocausto das mulheres

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Excerto de The Pawnbroker, citado por Cathy Caruth em Unclaimed Experience, Trauma, Narrative and History

Apropriadamente, a SIC passou uma reportagem – vejam, é dolorosa, mas não percam – sobre a forma como o sistema judicial português trata os casos de violação no dia de lembrança das vítimas do Holocausto. E apropriadamente por muitas razões. Apesar de historicamente o Holocausto estar constrito a uma meia dúzia de anos da Segunda Guerra Mundial (ou uma dúzia, se contarmos a partir das leis de Nuremberg), e de as violações ocorrerem continuamente, imparavelmente desde o início dos tempos (é ler a violência da Bíblia sobre as mulheres, e relembro que os primeiros escritos bíblicos são do século X a.C, há uns simpáticos três mil anos), de o Holocausto ter sido dirigido sobretudo a judeus e de as violações não escolheres cor nem raça nem etnia das mulheres, as duas realidades têm muito em comum.

Primeiro ponto em comum. Tanto os eventos do Holocausto como a violência sexual são indutores de trauma. Trauma não é uma coisa cool, de pessoas que gostam de parecer melancólicas para que os demais lhes dêem atenção. Trauma é uma doença debilitante chamada stress pós traumático (PTSD, de post traumatic stress disorder) com grande impacto negativo da vida das pessoas que o sofrem. Desde insónias, a pesadelos onde revivem os eventos traumáticos (a chamada repetição traumática) acordando num susto porque revivem a situação, a dissociações, ao numbing (como que um adormecimento dos sentimentos e emoções), o sentimento de culpa por terem sobrevivido (quando outros e outras nas mesmas circunstâncias pereceram) também chamado de culpa do sobrevivente, até ao suicídio. É tristemente curioso o número de sobreviventes de eventos traumáticos (guerras, abuso sexual, campos de concentração,…)  que, conseguindo sobreviver, terminam suicidando-se quando estão em liberdade e segurança. Porventura porque os eventos traumáticos de facto causam dano à química cerebral e porque nunca se pára de (re)viver o trauma. Como diz Cathy Caruth em Unclaimed Experience, há permanentemente ‘o regresso literal do evento contra a vontade daquele que habita’.

É certo que o Holocausto matou grande parte das suas vítimas (também há muitas mortes de mulheres depois de violadas), mas os sobreviventes passaram o resto da vida com esta ‘ferida que não se cura’. Basta ver o longo filme Shoah, de Claude Lanzmann, ou o Fortunoff Video Archive for Holocaust Testimonies, e o sofrimento atroz que todas as pessoas evidenciaram ao contar o que tinham vivido nos campos de concentração. Também a reportagem da SIC é um bom testemunho do aftermath de uma violação para uma mulher.

Segundo ponto em comum. A dificuldade de prova. Há pouco tempo o filme Denial mostrou como o Holocausto tem tão poucas provas diretas das mortes dos seis milhões de judeus (o que, claro, faz as mentes mal formadas ou retintamente limitadas não reconhecerem a existência massiva de mortes). Não há provas porque, claro, os nazis cuidaram de as destruir. As câmaras de gás foram explodidas antes de os exércitos inimigos tomarem conta dos campos de concentração. Os papeis foram destruídos (sabe-se da Conferência de Swansea porque apenas os apontamentos de um dos participantes não foram desfeitos). Os corpos, bom, foram incinerados. E por aí adiante. As provas que existem vêm dos relatos dos sobreviventes, das contas dos transportes através de comboio e dos judeus que desapareceram, de testemunhos que conseguiram sobreviver aos seus autores (diários que eram enterrados, por exemplo), dos familiares que se esfumaram, dos rumores que se iam espalhando (no Vaticano sabia-se desde 1942 da ‘orribile deportazione’), do que se encontrou apesar dos esforços de apagamento da verdade nos campos de concentração. Sempre nesta linha.

Com as violações sucede o mesmo. Os perpetradores escolhem momentos em que estão sozinhos e sem testemunhas (se há testemunhas geralmente trata-se de um gang rape). Tendo em conta o diferencial de força entre homens e mulheres, não é necessária grande violência para violar uma mulher. E, se há alguma violência, bem, pode-se sempre alegar que ela gosta de rough sex e ele carinhosamente acedeu.

Pelo que a prova que resta é a história da mulher e, eventualmente, alguns resíduos de ADN que mostram que houve sexo. E, claro está, toda a gente sabe que as mulheres são mentirosas, era o que faltava algum homem ser condenado só porque uma mulher diz. Os machistas de todo o mundo empenham grandes esforços nesta tese, e os legisladores e juízes, em boa verdade, têm ido atrás. Uma vítima de violação credível é só uma mulher que fique entravada para o resto da vida, enlouqueça devidamente (não é cá essas mariquices de traumas) ou, melhor ainda, que morra na sequência da violação. Assim, sim, pode-se acreditar na vítima. De qualquer outra forma, façam o favor de desconfiar. Como diz Kali Tal em Worlds of Hurt, se contar o que se passou ‘ameaça o status quo, poderosas forças políticas, económicas e sociais pressionarão os sobreviventes para ficarem calados ou reverem as suas histórias’.

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Worlds of Hurt, reading the Literatures of Trauma, de Kali Tal

Este estado de coisas tem muitas vantagens. Há uma tremenda impunidade para a violência sexual – e uma grande quantidade de homens (mais cúmplices femininas), por alguma razão, dedica grande esforça a manter esta impunidade. Por alguma razão? Bom, não é difícil a razão desta infelizmente grande quantidade de homens. Há os que querem manter a possibilidade de violar, forçar, abusar sem correrem o risco de serem por isso punidos. E há os que, não sendo violadores nem abusadores, odeiam de tal modo o feminismo e a emancipação feminina e a liberdade sexual das mulheres que, em boa verdade, apreciam a existência de violência sexual perpetrada por terceiros. Acham que as mulheres merecem, afinal têm de pagar algum preço por serem livres. E, por outro lado, a ameaça de violência sexual é uma boa forma de limitar a liberdade das mulheres – não podem ir a todo o lado, não podem ir sozinhas sem correr demasiados riscos, ficam com os movimentos tolhidos. Além disto, odeiam de tal forma o feminismo que preferem defender agressores sexuais (que até podem ser bons tipos, ao contrário das harpias das feministas) que assumir que as feministas têm razão em reclamar, ou que aceder às suas exigências.

Não nos enganemos: os homens (e as idiotas úteis femininas) que defendem o status quo, que perante casos de violação que ficam por reportar, ou sem acusação, ou são absolvidos ou, se condenados, têm pena suspensa – têm este perfil. É assim. Pretendem que as vítimas de violação tenham vergonha de fazer queixa, e querem a continuação dos maus tratos às vítimas quer por investigadores, pessoal médico ou juízes. De modo a que uma mulher violada queira tudo menos passar pela experiência de tentar punir o seu violador. Pretendem que os casos de violação continuem nos consultórios de psicólogos e psiquiatras. No máximo é-lhes permitido contar a sua história, em movimentos como o #metoo, até porque há de imediato uma ofensiva masculina (com as idiotas úteis femininas, claro) para insultar e calar e ignorar (tanto quanto se consegue) as mulheres que acusam publicamente violadores e abusadores.

Este estado de coisas tem de mudar. A bem ou a mal. Em Portugal é urgente alteração penal que impeça penas suspensas para violadores, que aumente as penas e, sobretudo, que considere como provas suficientes uma história credível de uma mulher, juntamente com perícias psicológicas aos efeitos que o evento traumático teve. Junte-se a isto formação em barda aos juízes que temos nos tribunais penais (e nos tribunais de recurso), atualmente produzindo decisões inqualificáveis, para perceberem o que é uma história credível. Informação sobre como se expressa a memória traumática (que se foca mais em aspetos como um tom de voz ou a expressão de um olhar ou o medo sentido na altura que em pormenores como a cor da roupa ou a descrição do local – porque uma vítima está a viver estímulos que não lhe permitem a memorização desses pormenores jornalísticos) – este paper dá uma boa ideia do que descrevo -, as dificuldades em contar a história e porque o facto de demorar a contar não significa que a história seja falsa.

Não há desculpa para ignorar este tema ou inventar tretas – a informação é esmagadora. As consequências da inação e da impunidade são a continuação ou a subida dos crimes sexuais, mesmo num contexto em que os crimes violentos têm diminuído. Em Portugal ou nos Estados Unidos.

Acresce o efeito retraumatizante e revitimizador de ver a sua queixa, o seu testemunho, a sua ferida desconsiderada pela sociedade pela voz dos juízes dos tribunais. Como lembra Judith Herman no seu Trauma and Recovery, é essencial para a cura do trauma a vítima ser validada pela sociedade, que a comunidade lhe diga que compreende a injustiça que lhe foi feita e que agirá para reparar e que não volte a suceder. Não é difícil imaginar o efeito que o contrário – uma absolvição por via da suspensão de penas – tem nas vítimas de violação (as que chegam a tribunal e conseguem provar, o que já é uma minoria), geralmente emparelhada com palavras canalhas escritas por juízes nas sentenças ou acórdãos.

O efeito dissuasor de penas pesadas e sistema de justiça atuante tem sido determinante para diminuir vários crimes. Se existem juízes (não todos, não todos) que ao arrepio de qualquer valor e decência fazem por manter a impunidade dos crimes sexuais e, por isso, aumentar o risco de mulheres (e crianças) serem violadas e abusadas, cabe aos eleitores exigirem aos políticos que alterem leis e sistema judicial e avaliem juízes de modo a parar com este Holocausto das mulheres.

 

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