Trump e a imigração.

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O tema é carregado de justificações apressadas, demonizações frequentes e soundbites racistas. Na verdade, em relação a este e outros temas, torna-se difícil, neste ano de 2019, não pensar que a verdade se perdeu para sempre no mar de posts, ódios e fake news que nos rodeiam.  

Como sem esperança ninguém avança, é necessário acompanhar a leitura deste artigo com a certeza de que nada foi inventado pelas redes sociais. O ódio já cá andava, o boato e a maledicência andam de mão dada desde tempos imemoriais. Nada de novo, portanto, apenas tudo propagado a velocidades e com alcances estonteantes. A boa notícia é que a verificação dos factos, a investigação séria e o jornalismo ético também andam por aí, prontos a serem propagados com a mesma velocidade do ódio disfarçado de cansaço do politicamente correcto. 

No tema concreto da política de imigração de Donald Trump – ou em todos os assuntos relacionados com o presidente americano – o véu de desinformação é difícil de afastar. A polarização do discurso, chegada a este lado do Atlântico, vem turva, complexa, simplificada pelo racismo latente, pela preguiça de deixar de consumir informação pela rama, pelo misto de ódio e amor que a figura americana representa. 

A simplificação da política do ódio é técnica antiga e deve ser combatida. Para muitos, Trump é assunto longínquo, mas no mundo de hoje isso já não existe.  Não sendo uma realidade que nos diga directamente respeito, é de compreensão necessária enquanto aprendizagem para o combate da manipulação do discurso político que alastrou pelo mundo inteiro e que já chega a Portugal: meias-verdades, mentiras, frases-feitas vazias e amuos face à correcção política são facilitadores de extremismos (à direita e à esquerda), de intolerâncias mal-resolvidas, em resumo, de falta de compaixão. 

Importante referir que este não é um artigo contra políticas de imigração ou objectivos de redução de números de imigração legal ou ilegal. O que choca não é a tentativa de controle das fronteiras. Esse é um combate antigo, para o qual uma parede gigantesca é apenas desperdício de dinheiro e monumento ao ego exaltado do líder do país. O que deve ser rejeitado é o discurso odioso, são os atropelos dos Direitos Humanos, é a reversão de tudo o que a América sempre representou para o mundo. Discurso este que alastra a outras paragens e potencia manipulações nefastas. Que tem de ser esclarecido e entendido para ser combatido. Aqui, como lá fora. 

A demonização da imigração,  em particular dos refugiados, também não é invenção de Trump nem é estranha à história dos Estados Unidos. Para cada fluxo migratório, a instrumentalização do ódio: assim foi em 1850 com o surgimento do movimento Know Nothing como reacção à chegada da imigração irlandesa. Mais tarde, em 1920, com a relação estreita entre a subida de fenómenos racistas, como o Klu Klux Klan, e fluxos migratórios provenientes do leste e sul da Europa. 

A insistente retórica de ódio à imigração foi parcialmente vencida, não só pela indignação das pessoas de bem, mas, essencialmente, pelos números. Ultrapassadas as turbulências iniciais, a América plural venceu pela diferença, as comunidades imigrantes foram integradas, o orgulho do melting pot americano e do fenómeno self-made people viraram regra. A desigualdade continuava – e continua – a atingir determinadas comunidades, em particular, a comunidade negra, mas o patriotismo renascido passaria a garantir algum consenso em torno da diversidade. 

Chegados a 2019, assistimos, com espanto, ao retrocesso civilazicional. E aqui reside o perigo e o motivo para a necessidade de esclarecimento dos factos. A tentativa de desinformação perpetua a esquizofrenia de ter o líder do país com a população mais diversa do mundo a debitar soundbites odiosos face a comunidades inteiras, ignorando, para isso, as suas próprias origens imigrantes, a sua mulher imigrante e os seus filhos de nomes pouco americanos. 

 Segue então, a lista de insinuações de Trump e sua equipa: 

  • Os imigrantes são bandos de oportunistas, ilegais, propensos à criminalidade. 

Vale tudo para demonizar os imigrantes, em particular os imigrantes provenientes do triângulo norte da América Central ou da vizinha Venezuela, país entregue a um regime ditatorial comunista que tem suscitado a solidariedade de tantos portugueses, entre os quais, obviamente, me incluo. Ora, estar solidário com o povo venezuelano é também entender que o desespero da pobreza extrema força ao exílio. É ter compaixão com a população e não apenas ódio ao regime comunista. Infelizmente, a Venezuela não é o único país da região e ser fustigado por índices de criminalidade, corrupção e tráfico de droga nunca antes vistos. Os dados são chocantes, bem resumidos neste relatório do Conselho Norueguês para os Refugiados: Honduras e El Salvador são dois dos cinco países com os piores índices de homícidos do mundo. Cerca de dez porcento da população combinada de Guatemala, Honduras e El Salvador necessita de ajuda humanitária. Um em cada cinco hondurenhos, salvadorenhos e guatemaltecos vive com menos de um dólar e noventa por dia. Mais de oito porcento da população com menos de quinze anos vive na pobreza extrema. Os gangs de narcotráfico recrutam os seus membros nas escolas, forçando, muitas vezes, ao encerramento das mesmas. Nas Honduras, uma mulher é morta a cada dezassete horas. Os números da violência sexual, de tão corriqueiros e calados, são impossíveis de contabilizar. 

Podemos concluir que as caravanas são constituídas, não por oportunistas, mas por refugiados, que, como a definição legal nos ensina, são aqueles que não conseguem regressar ao seu país de origem por estarem ameaçados nos direitos mais essenciais. Que, na sua fragilidade, ficam particularmente a  expostos a crimes de tráfico de pessoas, extorsão e violência sexual. 

Chegados à fronteira, os migrantes deparam-se com duas opções: ou escolhem rotas ilegais de entrada nos Estados Unidos, controladas por grupos de narcotráfico e tráfico humano, ou permanecem em Tijuana, onde pedem oficialmente asilo aos Estados Unidos. Referir que, segundo a Lei Americana, o pedido de exílio só pode ser feito no posto de fronteira. Ou seja, os migrantes que se encontram em Tijuana estão a escolher a via burocrática e legal de entrada nos país. É importante ter isto em conta. Em vez de valorizar a legalidade, a equipa de Trump opta por propositadamente cortar o número de funcionários do posto fronteiriço, enviando, em vez disso, tropas para a patrulha de uma parte da fronteira não-ameaçada. Os migrantes deparam-se com burocracia interminável, dias de espera, decisões de concessão de asilo adiadas até ao limite. Contam com a zero ajuda por parte do governo dos Estados Unidos, assistem o enfiar da cabeça na areia por parte das autoridades americanas. Em lenta espera numa cidade – Tijuana – com os maiores índices de criminalidade do mundo. Não é difícil adivinhar o que passam as populações, entaladas numa cidade sem lei, com a ajuda possível do governo mexicano, à porta do país que se diz “the land of the free and the home of the brave”. Nem um braço estendido. Já duas mortes de crianças. Zero assistência humanitária ou diálogo com as autoridades mexicanas. Desprezo puro. Maldade imensa. 

  • A separação de famílias é inevitável e dissuasora. 

É difícil de acreditar que a separação de famílias foi iniciada com o único propósito de dissuadir a vinda de outros imigrantes, mas é o que de facto aconteceu até um Tribunal americano acabar com o atropelo bárbaro dos direitos das crianças. A política de Trump face à imigração é tornar o país o mais desumano possível. Para isso, procedeu-se à separação das famílias que tentavam atravessar a fronteira. As crianças foram instaladas em verdadeiros campos de concentração que Trump entregou, obviamente, à gestão privada. Há relatos de sobre-medicação de crianças e as imagens são absolutamente chocantes. Para piorar, há um desconhecimento em relação à verdadeira dimensão da tragédia. Sucedem-se relatos de registos de crianças perdidos, representações legais difícieis ou impossíveis. Notícias recentes aumentam o número de famílias separadas e revelam que a política de separação começou clandestina, muito antes de ser anunciada. 

E se era difícil mas possível acreditar que Donald Trump fazia isto pelos americanos, com o shutdown fica claro que o Presidente dos Estados Unidos não olha a meios para declarar vitória, para construir o seu monumento ao ego, absolutamente ineficaz no combate à imigração ilegal. Ao activar o shutdown, encerra organismos públicos essenciais à preservação da segurança do país, nomeadamente – pasme-se, o TSA (Transportation Security Administration), responsável pelo controle de fronteiras, fundamental para a segurança do estado e controle da circulação de pessoas e bens. Sob o pretexto de uma ameaça inexistente, a maioria dos funcionários do Estado fica sem receber salário, não tendo outra hipótese senão recorrer ao auxílio de ONG’s e/ou das suas comunidades, que providenciam refeições e serviços gratuitos para minorar o descalabro. 

Tudo isto se passa no país mais poderoso do mundo. Onde as desigualdades subsistem, é certo, mas onde tantos pensadores, humanistas e políticos, refugiados e imigrantes encontram casa. Como chegámos a este ponto? Subestimando a ameaça de Trump. Transformando-o numa caricatura de programa de televisão. Abdicando da diversidade na representatividade política, social, económica. Falhando no diálogo político desempoeirado, acessível a todos. Deixando de lado os números e artigos como este, do New York Times, que estabelece uma relação entre criminalidade e imigração e que deita por terra o mito de que cidades com mais imigrantes são mais violentas.  Chegámos a este ponto porque nos rendemos à preguiça de quem fica pela rama do clickbait em vez de ferozmente incentivarmos a promoção da curiosidade. 

Nota Final. 

No dia em que escrevi este texto, Donald Trump, ao fim de trinta e cinco dias, levantou o shutdown. Com um custo de onze mil milhões de dólares, tendo afectado oitocentos mil funcionários, o shutdown torna-se, assim, a derrota política mais cara de Donald Trump, ainda por cima às mãos de uma mulher democrata sem medo de sublinhar a imoralidade da política do presidente. 

Como era de esperar, Trump promete vingança. Porque para quem ganha eleições à custa da exaltação do ego, a derrota perante uma mulher é a coisa mais humilhante que pode existir. 

Referir, em jeito de finalização, que os atropelos aos direitos humanos relativamente à imigração não são exclusivos dos Estados Unidos. Em Julho do ano passado, na sequência de relatório alarmante elaborado pela Provedora da Justiça Maria Lúcia Amaral, a jornalista Joana Gorjão Henriques produziu uma peça de investigação para o jornal Público acerca da situação caótica dos centros de instalação temporária do SEF. A matéria despertou a atenção dos grupos partidários PSD-Lisboa e BE, que se deslocaram ao terreno e pressionaram o Ministro da tutela a agir. Rapidamente, o Ministro da Administração Interna Eduardo Cabrita solicitou a abertura de inquérito urgente. De urgente ficou apenas o nome, já que desde Julho que se aguardam resultados. O tão esperado relatório tarda a produzir conclusões, que se exigem rigorosas e consequentes.    

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Teresa Morais tem 35 anos, é jurista, tradutora e activista. Depois de viver em São Paulo e em Londres, voltou, há dois anos, à Lisboa que a viu nascer. Gosta de biografias, boas revistas, boas séries, bons políticos e bons amigos. Ouve música de todos os estilos, a toda a hora, em qualquer lugar. Está no Capital Magazine por acreditar ser esta a hora de falar de causas e de fazer melhor política em Portugal.

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