Yu Hua: Distopias e Humor, na Revista LER

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Há uns meses escrevi para a Revista LER, de Verão 2018, um ensaio sobre um dos meus escritores favoritos: o chinês Yu Hua. Deixo aqui os primeiros parágrafos para abrir o apetite. E os últimos. Pelo meio falo dos livros de Yu Hua – e da história recente da China, que é sempre uma personagem muito ativa nas histórias deste autor. Podem adquirir a Revista Ler Verão 2018 aqui.

‘O meu primeiro encontro com Yu Hua foi tão inesperado como o último, quando de repente, mal chegada à Feira do Livro deste ano, ainda sem farturas compradas nem raspanetes dados aos meus filhos por se tentarem afincadamente perder na confusão, encontrei Yu Hua a autografar livros na barraquinha da Relógio D’Água – a editora portuguesa do autor. Corri a comprar o penúltimo China em Dez Palavras do stock, guerreei com uma chinesa que me queria passar à frente na fila dos autógrafos, mais à frente estava outra chinesa com uns seis ou sete livros para irem ao carimbo do autor que infelizmente não reparou nos meus revirar de olhos por todo o tempo que me iria fazer tardar, finalmente chegada a minha vez declarei-me uma ‘huge fan’, informei que tinha lido todos os livros, tirei selfie com um Yu Hua sorridente e, por fim, passei à frente na feira deixando o autor provavelmente aliviado por ter sobrevivido a tanta devoção literária.

O primeiro encontro foi mais circunspecto. Passou-se na Waterstones de Bruxelas, em dezembro de 2011 (devemos sempre recordar as datas em que conhecemos as pessoas importantes da nossa vida), sendo o protagonista o mesmo livro em inglês. Nunca tinha ouvido falar de Yu Hua. Nem estava grandemente inclinada para uma imersão na literatura chinesa. Nada faria prever que poucos anos mais tarde os autores mais comprados para as minhas leituras teriam nomes como Feng Jicai, Wang Shuo, Can Xue – e Yu Hua. A minha mais recente (e quase única) referência chinesa eram os policiais de Qiu Xiaolong, autor que descobri numa outra Waterstones, a de Guildford no Surrey, um par de anos antes. Porém tinha acabado de me inscrever num mestrado em Estudos Orientais e o livro era composto por dez ensaios sobre a China contemporânea – as tais dez palavras do título que dão nome a cada ensaio –, não ficção, nem sequer muito grande, uma encadernação de capa dura agradável à vista. Bom, compra-se. Afinal estava mais interessada na história da China do que na literatura da China. Ingénua, eu, ainda desconhecia que as duas estão ligadas inexoravelmente.’

E no fim.

‘Porém as histórias de Yu Hua não são locais de vazio, sofrimento e desesperança contadas com humor improvável. Tanto a maldade da história chinesa dos tempos maoistas como a fealdade da China capitalista são contrariadas pela bondade – e o amor, nos livros de Yu Hua, é mais uma forma de bondade – com que algumas personagens presenteiam outras. É a bondade que as personagens encontram noutras, no meio dos vendavais comunistas ou da impiedade do boom económico, que lhes permite a redenção possível. […]

O amor/bondade em Yu Hua não nos é revelado com descrições piegas de sentimentos. O amor/bondade é prático, concretizado nos atos – que são contados, como quase sempre, com humor. Acima de tudo, o amor/bondade é provado quando as personagens desafiam as ordens da História para apoiarem aqueles que amam. Jiazhen, em To Live, corrompe o oficial do partido da sua aldeia para manter a propriedade de um saco de arroz para alimentar a família durante o Grande Salto em Frente. Xu Sanguan leva todos os dias uma boa refeição escondida à sua mulher enquanto ela é exibida e humilhada na via pública nos inícios da Revolução Cultural por ser um ‘sapato velho’.

Os atos de amor, bondade e lealdade, de dimensão variável, parecem ser, nas obras de Yu Hua, a forma subversiva de os chineses sobreviverem à hostilidade e perversidade do maoismo e do capitalismo. Há estratégias de sobrevivência piores.’

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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