Requiem pelo sexo

0

Está nos cinemas o imperdível filme „Uma luta desigual“ (On the basis of sex, no original), que narra a biografia da juíza do Supremo Tribunal americano, Ruth Bader-Ginsburg.

Ao longo de duas horas o/a espectador/a leva vários murros no estômago, assistindo impotentemente às inúmeras discriminações de que a própria jurista é alvo, por causa do seu sexo. Melhor aluna de Harvard e Columbia, mas destinada a competir incansavelmente contra homens medíocres e a perder a maior parte dessas lutas, por causa do seu sexo. Obrigada a cumprir critérios de exigência e trabalho sobre-humanos apenas para alcançar as mesmas promoções e vitórias, por causa do seu sexo. Insultada, silenciada, criticada, rejeitada e discriminada durante toda a vida, por causa do seu sexo.

Mas é precisamente por causa do seu sexo que Ruth Bader-Ginsburg consegue a vitória num caso que a pôs em rota directa para o Supremo Tribunal. Foi por entender o que é a discriminação sexual e como opera, porque a sente na pele, que teve a empatia necessária para defender uma vítima de discriminação sexual. E foi o seu génio e intuição jurídica que souberam que aquele era o caso bandeira que levaria à mudança da lei – porque a vítima era do sexo masculino, o que a torna automaticamente mais empática, humana e merecedora.

Curiosamente, não é este o maior murro no estômago do filme, mas sim uma cena breve, de segundos, protagonizada por Ruth Bader-Ginsburg e pela sua assistente. Tendo acabado de dactilografar as alegações do processo de discriminação sexual, a assistente queixa-se que escrever a palavra sexo tantas vezes a deixou desconfortável. Alerta para o risco de os homens que lerem o documento serem permanentemente sugestionados para o acto sexual e ignorarem o fundamento do processo. Quando lhe pedem uma solução possível, a assistente sugere substituir a palavra sexo por género. Ruth Bader-Ginsburg concorda de imediato, tendo parecido ficar mais preocupada com a necessidade de a sua assistente ter de repetir todo o trabalho de dactilografia, alheia ao impacto da sua decisão irreflectida.

Sabemos que parte do filme é ficcionado, pelo que não foi, com certeza, esta assistente a decidir substituir sexo por género. Mas não é descabido que tenha sido um episódio igualmente absurdo a estar na origem do género como sinónimo de sexo. De forma igualmente rápida e igualmente irreflectida. E motivada pelo mesmo catalisador: o puritanismo.

Sexo é uma palavra proibida há vários séculos. Da Bíblia – onde as crianças nascem porque os pais “se conhecem” – à Idade Média, todas as gerações procuraram sinónimos criativos para o termo que define o acto sexual. Mas o sexo como marcador biológico tinha sobrevivido relativamente incólume. Até às últimas décadas.

Começou na academia e espalhou-se como wildfire. Tivemos a revolução sexual nos anos sessenta, a afirmação dos direitos das mulheres como direitos humanos mas, de repente, deixámos de falar em sexo e em mulheres. Estudos superiores anteriormente chamados “Estudos das Mulheres” foram, um a um, substituídos por um alegadamente neutro “Estudos de Género”. Teses, estudos, tratados académicos, formulários e, o mais grave, leis, todos estão rápida e progressivamente a eliminar a palavra sexo. A a liberdade, a igualdade, a discriminação e tantos outros conceitos basilares estão a perder o referente sexo, para serem “de género”.

Sexo é sujo, rude, ordinário e gráfico. Género é esterilizado, limpo, neutro e, acima de tudo, educado. Ninguém pensa em corpos suados nem em hormonas desenfreadas quando escuta ou lê a palavra género.

O problema é que as palavras têm significado e importância. E os termos não se equivalem. Género é um péssimo sinónimo para sexo, porque já está tomado – na gramática e na taxinomia – género define ainda o conjunto de estereótipos associados ao nosso sexo. Sexo é biológico, género é social e cultural. Sexo é fêmea/macho, género é masculinidade/feminilidade. Sexo é XX ou XY (intersexo é a excepção que confirma a regra da nossa espécie ser binária). Sexo é as mulheres têm ova, os homens espermatozoa. Género é azul vs. rosa, é bonecas vs. carros, é as mulheres são sensíveis e complexas e por isso escolhem profissões que as excluem do topo do poder, e os homens são brutos e básicos, não choram e não têm medo de correr riscos, por isso aptos a cargos de poder. Nenhum destes estereótipos é biológico, é tudo 100% cultural e é tudo 100% estupidez.

As mulheres são oprimidas pelo seu sexo, pela sua capacidade reprodutiva, não pelo seu género. É irrelevante se a mulher usa verniz e baton: continuará a ser assediada na rua, discriminada no trabalho, agredida em casa pelo simples facto de ser mulher.

O feminismo visa a libertação das mulheres, não apenas da feminilidade. Estudos das Mulheres focam as lutas, especificidades e desigualdades do sexo feminino, não do género, pelo que é uma contradição a mudança de nome para “Estudos de Género”.

Esta substituição não é apenas geradora de desordem e incerteza, é uma mistura de conceitos que leva à imprecisão e, por conseguinte, à comunicação defeituosa. Muitas mulheres, do sexo feminino, fêmeas, XX, não são do género feminino, não exercem a feminilidade. O mesmo para muitos homens. Isso não muda a sua biologia, nem os cromossomas presentes nos seus triliões de células.

O nosso sexo, embora imutável, não é uma prisão. O nosso género já é. Se aceitamos pacificamente como verdadeiros os estereótipos que a sociedade patriarcal nos dita porque nascemos com aqueles genitais, aí sim estamos presos. Esses estereótipos são correias que o patriarcado desenhou e nos pôs para manter a hierarquia entre sexos, para manter as mulheres “no seu lugar”, inevitavelmente num papel abaixo dos homens.

Se queremos destruir este sistema arcaico – e todos/as devíamos querer – temos de destruir os seus mecanismos. E o género é um mecanismo essencial do patriarcado. O primeiro passo é pararmos de usar a palavra género neste sentido, é usarmos as palavras correctas para os conceitos que queremos comunicar.

Os efeitos da prejudicialidade de confluir sexo com género estão à vista: se a sociedade é cega ao nosso sexo e só vê o nosso género, então direitos e conquistas específicos do nosso sexo deixam de fazer sentido e passam a ser discriminatórios e, logo, ilegais.

Deixemos de ser púdicos/as e recuperemos a palavra sexo. Somos mamíferos, somos fêmeas e machos, a nossa espécie tem dois sexos e ninguém precisa de corar por dizermos isto. Acabemos com sinónimos confusos e desadequados que são profundamente nocivos: se não conseguimos distinguir entre sexos, não conseguimos combater a discriminação sexual. Ignorar o sexo deixa as mulheres numa situação mais desigual e mais injusta onde os direitos conquistados a ferros pelas nossas antepassadas estão sob ataque, em nome da igualdade de género. Somos metade do planeta, estamos unidas e organizadas e já não aceitamos ser discriminadas por causa do nosso sexo. Recordando as palavras de Sarah Grimké, escritora sufragista e abolicionista, escutadas numa das cenas finais de Uma Luta Desigual, “I ask no favor for my sex. All I ask of our brethren is that they take their feet off our necks.” (Não peço nenhum favor para o meu sexo. Só peço aos meus irmãos que tirem o pé do nosso pescoço”.)

sexvsgen

 

Deixe um comentário. Acreditamos na responsabilização das opiniões. Existe moderação de comentários. Os comentários anónimos ou de identificação confusa não serão aprovados, bem como os que contenham insultos, desinformação, publicidade, contenham discurso de ódio, apelem à violência ou promovam ideologias de menorização de outrém.

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.