Declaração de amor a Lisboa

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Lisboa vista do Arco da Rua Augusta

Nasci no Porto, sempre com um pé em Lisboa, desde pequeno. O meu pai estudou lá, anos mais tarde a minha irmã mais nova: o mesmo destino, curso, hábitos e rotinas. Apenas mudaram os anos, as vontades e lutas.

É errada a ideia de uma constante rivalidade entre as duas principais cidades deste país pequeno. Aliás, quando o Porto tenta imitar Lisboa perde a graça. Quando Lisboa desvia certas atenções com autoridade, dá um ar altivo. Mas é inegável que ambas as cidades têm a sua história, a sua identidade e espaço. Uma querer parecer a outra é que não.

A ideia de Lisboa em mim é de um mundo, o barco de civilização que navega um rio calmo e sereno, rumo ao desconhecido. Tal como noutros lugares, não acredito que as coisas se conheçam dentro de um carro, parados no trânsito. Lisboa é uma rotina para as minhas pernas, uma subida e descida constante, que trabalha os músculos todos.

Não conhecemos uma cidade enquanto não entramos num autocarro e sentimos o pulso das pessoas. Não percebemos as subtilezas dos seus segredos, sem privar com um taxista. Ignoramos uma hora de ponta, se não entramos no metro. Excluímos todos os sentidos proibidos, se nos desviamos deles, perdendo os tesouros que lá podem estar.

Numa destas manhãs, desço até ao Rato. Passo na minha livraria preferida, ali mesmo à frente da Procuradoria – a Almedina. Quem não conhece o Edgar, dificilmente sabe o que é a arte de ser livreiro. Desafio-vos a ver este espaço de simetria meticulosa e arrumação perfeitas, casa de quem vive dentro de uma história.

Passada larga até ao Botânico, desta vez não me escapa. Os cactos gigantes recebem-nos, à medida que vamos descendo pela floresta de árvores densas e exóticas, de encontro ao lago. Sento-me num banco, sem namorada para abraçar. Mas é como se sentisse esse calor.

Sábado de manhã é dia de feirinha biológica e de outras bugigangas no Príncipe Real. Passo a correr, sem que os olhos parem. Situo-me na frente do Convento de São Pedro de Alcântara e sinto o magnetismo da pequena capela lateral, um local de profunda e muito íntima relação espiritual. Vejo depois o restante convento, passeando pelos ricos azulejos, talha dourada e pinturas.

Antes de almoçar visito, com toda a atenção, a Igreja de São Roque. Fico, permaneço, volto atrás. Há tanto para ler, para acompanhar. Desta vez deixo passar o museu da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, penso que merece uma manhã ou tarde só para o ver.

Num almoço rápido no Chiado, vejo musgo à venda para os presépios. As pessoas parecem formigas, descendo a rua Augusta num frenesim de instinto, interrompido por turistas e meros contempladores.

Subo ao Arco da Rua Augusta, objectivo de visitas anteriores finalmente saciado. Passado o relógio, mais uns degraus e percebo a dimensão das estátuas, enquanto vejo um Tejo sem fim, na praça mais bonita do mundo. Viro-me para o lado oposto e vejo tantas vidas em ponto pequeno a circular, perdidas nos seus objectivos. Para os lados: o Terreiro do Paço deixa subir até ao Chiado e o Castelo convida a Sé.

Vou beber uma ginja ao Largo de São Domingos, preciso de matar o bicho. É sábado, dia 1 de Dezembro, e a Avenida da Liberdade enche-se de bandas filarmónicas, descendo por ali fora. Abre o desfile a de Olivença, e eu acompanho tudo até ao Marquês, são mais que muitas.

O dia não termina sem visitas aos amigos, familiares, uma ida ao bingo, uma festa e uma saída ao Cais do Sodré. Afinal, Lisboa vive-se. Será sempre assim, a declaração de amor possível.

 

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Rodrigo Ferrão nasceu em 1983, é natural do Porto e frequentou o curso de Direito, mas virou a página e foi livreiro alguns anos. Rodeado de livros, dedicou-se à discussão literária através do mundo digital. Não totalmente realizado com o debate, decidiu escrever a sua própria poesia, seguindo-se de outras grafias. Gosta de ler, passear no campo e na cidade, escrever e viajar – não perde uma oportunidade para contar aquilo que vê. Sonha um dia largar o trabalho e ir por aí, divagando como pensa.

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