“In the prize ring of life, few of us would have lasted 10 rounds with Colette” John Updike
Para os que se dizem já saturados da fórmula mais ou menos esgotada dos filmes de época, este Janeiro traz-nos duas preciosidades: os recém-estreados Colette e o The Favourite. Ambos têm, como todos os outros filmes de época, as marcas de uma produção impecável desde o guarda-roupa meticuloso, actuações no ponto (algumas fortes candidatas ao prémio máximo da indústria do cinema, o Oscar) mas o que têm de menos comum são o facto de ambas serem histórias sobre personagens femininas subversivas, MeToos e feministas antes do tempo, e que, sobretudo no caso do The Favourite, alteram completamente o próprio estilo cinemático de filme de época.
Comecemos por Colette, uma co-produção britânica, americana e húngara, realizada por Wash Westmoreland, e com Keira Knightley no papel principal, o da novelista francesa Colette. O primeiro terço do fime segue o molde tradicional. Colette (Knightley) é uma rapariga do campo prestes a se casar com o empresário literário Willy (um fabuloso Dominic West). Como era costume na época (fim do século XIX) a noiva é apresentada aos salões parisienses e toda a Paris coscuvilha se o notoriamente promíscuo Willy está pronto para se casar. As infidelidades dele continuam mas Colette não assume o papel de espectadora passiva quando toma conhecimento delas. Ela exige honestidade e sobretudo salva a família da ruína quando o seu livro, publicado como sendo um romance de autoria do marido, se torna uma sensação literária. Colette e Willy tornam-se o casal mais poderoso do meio artístico parisiense.
O sucesso traz a pressão de replicar o impacto da obra inicial e vemos Willy a ser cada vez mais cruel com Colette exigindo-lhe que escreva mais e mais para depois ver os seus livros publicados em nome dele (curiosamente o mesmo tema do filme The Wife estreado no final do ano passado e sobre o qual já escrevi aqui). Felizmente para a harmonia do casal cada um tem actividades que os ocupam fora desta pressão creativa: neste caso a ocupação é dormir com a mesma mulher, a pioneira transsexual parisience Missy, a Marquesa de Belbeuf. Missy apoia e incentiva Colette a libertar-se e gradualmente isso é o que acontece, até ao ponto em que Willy se vê obrigado a vender os direitos da personagem popular que Colette criou e o balanço de poder no casal se reverte por completo.
Tanto Dominic West como Keira Kneightly são brilhantes mas o filme é inteligente ao não tentar abarcar a totalidade da vida de Colette e ao focar-se apenas num período que vai de 1893 a 1910. A vida completa de Colette é praticamente impossível de ser sumarisada num filme porque foi um total destruír de tabu atrás de tabu. Ela escreveu romances, ensaios, memórias e como jornalista cobriu tudo desde violência doméstica até às trincheiras da Grande Guerra, passando por anorexia, falsos orgasmos e lesbianismo (tudo temas proibidos à altura e sobretudo proíbidos para uma mulher). Ela produziu cenários para filmes sem som, escreveu um libretto para uma ópera de Ravel, foi actriz, mimo, abriu uma cadeia de salões de beleza e introduziu na França coisas tão corriqueiras agora mas revolucionárias na altura como o sushi, a musculação, permanentes, acunpuntura e facelifts. Três casamentos, relações com mulheres e inclusivamente com o filho do segundo marido (um adolescente de dezasseis anos apenas), que inspirou o seu livro Chèri. Foi ela que escolheu Audrey Hepburn a dedo para a adaptação teatral do seu livro Gigi em 1944 e o resto é história de Holywood. Colette era isto tudo mas, no entanto, manteve-se sempre profundamente individualista – famosamente tinha um desprezo total pelo feminismo organizado, preferindo ser a sua própria agente de mudança individual. Quando Proust morreu muitos chamaram a Colette a escritora mais talentosa que a França tinha – em 1948 ela é nomeada para o Nobelda Literatura e quando morre, em 1954, torna-se a primeira escritora feminina a ter um funeral de Estado em França.
O outro filme que representa uma lufada de ar fresco nos filmes de época e no cinema em geral, é o fabuloso The Favourite, realizado por Yorgos Lanthimos, numa co-produção britânica, irlandesa e americana e protagonizado por três actrizes: Olivia Colman, Rachel Weisz e Emma Stone. O filme passa-se na corte da Rainha Anne de Inglaterra (um reinado curto mas cheio, entre 1702 e 1707), a última monarca da dinastia Stuart. O argumento estabelece um equilíbrio entre as diversas guerras externas e a intriga interna, com o tipo de diálogo que era habitual na idade de ouro do cinema dos anos 30 e 40: rápido, taco a taco, incisivo, se bem que com muito mais sexo, inuendos e asneiras, sem deixar de prender a atenção do espectador por um segundo.
Colman é a Rainha Anne, obesa e depressiva, consumida pela doença da gota e por pensamentos suícidas. Uma rainha pouco confiante e desinteressada dos negócios de Estado (prefere dedicar-se a organizar corridas de lagostas que ao tédio do Parlamento), ela depende dos conselhos e da direção estratégica da sua amiga e amante, Lady Sarah Churchill (Weiz), da mesma família que deu ao mundo o grande Winston Churchill. Anne vive num quarto vastíssimo cheio de coelhos que ela trata por meus pequenos numa alusão aos dezasseis filhos que perdeu ao dar à luz. Influenciada por Sarah, Anne considera duplicar o imposto sobre o património para financiar a guerra contra a França, dirigida pelo Duque de Marlborough (que é o marido de Lady Sarah). O partido da oposição, os Whigs, opoêm-se radicalmente a esta medida e exigem um tratado de paz que salve dinheiro e vidas.
Neste arranjo doméstico e nacional entra Abigail (Emma Stone), uma prima de Lady Sarah que caíu na miséria e agora procura emprego. Começando por ser uma simples criada, Abigail sobe até se tornar dama de companhia de quarto da Rainha Anne, onde faz mais do que acalmar as dores das pernas da monarca. O trio lésbico está mais do que inaugurado quando Abigail declara a Sarah que gosta quando a Rainha “mete a língua dela dentro de mim” (sim, não viram esta frontalidade nua e crua no Downton Abbey), o que leva a uma luta literalmente mortal entre as duas mulheres pela afeição (e o poder daí resultante) da Rainha. Entretanto o líder dos Whigs usa Abigail para tentar influenciar a monarca. Um palácio onde todos dormem com todos, onde todos planeiam contra todos e onde só os coelhos parecem gozar do cenário idílico do campo inglês.
Com a sua mistura de intriga de corpetes, cabeleiras postiças e Haendal, Purcell e Vivaldi a rodos, o The Favourite ocasionalmente faz lembrar uma mistura pouco provável entre o The Draughtsman’s Contract do Peter Greenway e o Bound de Wachowski. No entanto, apesar do cenário histórico, este filme não tem nada da distância estéril de um filme histórico normal, pelo contrário, é cruel, deliciosamente contemporâneo e filmado com um sentido do absurdo modernista, quase que Trumpiano. A cinematografia de Robbie Ryan é brilhante: há um toque a Alice no País das Maravilhas na corte de Anne, como se estivessemos permanentemente a espiar pelo buraco da fechadura. Todas as actrizes principais (e este é um filme dominado por mulheres, onde os homens apenas servem para serem gozados ou manipulados) são brilhantes. Colman é soberba (já ganhou o Globo de Ouro por este papel) como a monarca inepta, combinando drama infantil, com irritabilidade neurótica e uma dimensão profunda de dor. Weiz é o emblema do foco e da dureza feminina: tudo nela serve um propósito de poder, nem que para isso tenha de recorrer a uma das suas várias espingardas. Stone leva-nos na sua viagem entre a inocência e a crueldade absoluta, qualidades que são precisas para sobreviver como uma mulher de poder na corte.
Mais uma vez o fundo real desta história cinemática é uma figura feminina extraordinariamente interessante e muito à frente da sua época. A Rainha Anne chegou ao poder em 1702, depois da morte de Gulherme III. Apesar da brevidade do seu poder e da sua saúde frágil, foi no seu reinado que se assinou uma das leis fundamentais da História britânica: o Acto de União de 1707 que juntou a Inglaterra e a Escócia debaixo de um único reino, com um único parlamento, denominado Grã-Bretanha. Apesar da sua debilidade física, Anne teve um papel crucial em promover essa mudança e em levá-la a bom porto, sobretudo considerando a vasta oposição que a ideia de uma união entre os dois países tinha à partida .
O reinado de Anne foi também marcado por outra mudança estruturante para o futuro da democracia britânica: o desenvolvimento de um sistema bipartidário: em geral na época de Anne os Tories favoreciam a Igreja Anglicana e os interesses dos proprietários rurais enquanto que os Whigs alinhavam com a burguesia commercial e o Protestantismo. O reinado de Anne marca um declínio dos Tories em favor da variante mais liberal dos Whigs. A administração dela também presidiu a uma era dourada nas artes e ciência: na arquitectura Sir John Vanbrugh construíu Blenheim Palace e Castle Howard. Arquitectura e mobília estilo Rainha Anna sucederam-se. Escritores como Daniel Defoe, Alexander Pope e Jonathan Swift floresceram.
O ponto mais controverso do filme é talvez a revelação que esta mulher iconoclasta e liberal era também uma lésbica ou pelo menos bisexual. Sabe-se que a relação dela com o marido era cordial e amigável mas, até agora, tinha-se evitado abordar em televisão ou em cinema o facto de que o verdadeiro amor da vida da Rainha Anne foi Sarah Churchill, Duquesa de Marlborough. Segundo os relatos da época as duas estavam sempre juntas, o que não é certificado de homosexualidade ou lesbianismo, mas, sobretudo nas cartas íntimas que deixaram para a posteridade, vê-se a devoção e paixão que tinham uma pela outra. Talvez no lado de Sarah Churchill o romance tivesse sido mais estimulado pelo desejo quase obsessivo de ascenção social (não só para ela mas também para o marido). No entanto, as cartas escritas pela Rainha Anne (algumas estão ainda na British Library em Londres) revelam um amor profundo e acima de tudo realista: a rainha estava consciente dos motivos por detrás da amizade que Sarah lhe dava e igualmente do choque que a relação entre as duas causava na corte. Mas como diz numa das cartas mais cândidas “I could not possibly care. The affairs of the heart have nothing to fear from the preconceptions of others”.
Colette e Rainha Anne. Duas mulheres. Duas épocas diferentes. Dois países diferentes. Mas a mesma sede de liberdade, a mesma vontade de experimentar e jogar com o papel feminino. Duas feministas que nunca usaram a palavra ou a prática feminista. Duas aventureiras à frente do próprio tempo. Estes dois filmes fabulosos recordam-nos que essas qualidades já existiam muito antes dos Swinging Sixties ou do Me Too. Fazem parte do património emocional humano.