As primeiras tiras da banda desenhada com o Tintin foi publicada a 10 de janeiro de 1929 no suplemento infantil do jornal Vingtième Siécle, o Petit Vigntième. Fez noventa anos esta semana, portanto.
Ora o Tintin é um assunto sério para mim. Se calhar na minha biografia/apresentação aqui da Capital Mag devia constar o epíteto de ‘tintinóloga’ – e com toda a justiça e falta de modéstia, porque sou. A minha devoção por este tema é tal que quando casei as mesas tinham nomes das personagens dos livros do Tintin.
Em minha casa pululam artefactos with all things Tintin. Desde um bule (a que infelizmente já parti a tampa e agora serve de jarra de flores) com umas impressões do Tintin e do Capitão Haddock no fundo do mar e no submarino-tubarão de O Tesouro de Rackham o Terrível. (Mais ainda permanecem duas chávenas de chá, as chávenas de café e duas leiteiras. Ufa.) Tenho mais umas chávenas de chá de outra fornada mais recente, que a loja da Avenida de Roma mandou vir de propósito para mim, estas com desenhos dos Charutos do Faraó em tons sépia. Os miúdos, quer gostem ou não, têm vários quadros no quarto do Tintin. E nem sequer são quadros normais como os posters das capas dos livros – isso toda a gente tem. São uma série de quatro gravuras com partes dos desenhos do Cetro de Ottokar e, a pièce de résistance, uma pintura em pastel misturado com uma gravura do Tintin na Lua que comprei ao autor na loja de brinquedos ao pé do Romerberg em Frankfurt. E mais umas (numerosas) coisas.
Além, claro, dos livros com a banda desenhada que tenho em casa, por vezes repetidos. E de livros sobre os livros do Tintin. Afinal Hergé, o autor, é um artista de mão cheia. A ligne claire, a sua forma de desenhar, merece ser apreciada por si mesma. E é um autor e um contador de história de primeira água. O ritmo da narrativa agarra-nos, as histórias são inteligentes, Hergé chegou mesmo ao ponto de desenhar um livro inteiro em que não se passa nada (As Jóias da Castafiore) – e que delícia que é, tal a mestria do desenhador.
É certo que os primeiros três livros são de uma falta de densidade avassaladora (tanto que por muitos anos Tintin no País dos Sovietes não voltou a ser editado). Mas os livros finais vão ganhando nuance, profundidade, ativismo, desencanto.
Nada o ilustra tanto como Tintin e Os Pícaros, o último livro da série. Aquele em que Tintin, Haddock e Girassol viajam para um país ditatorial da América Latina (que na altura eram praticamente todos) para salvarem Bianca Castafiore, prisioneira do ditador General Tapioca. Para lograrem o objetico mudam o regime: o novo ditador será o General Alcazar. Mas a mudança política deixa a miséria do país exatamente na mesma. O último quadradinho do livro mostra o avião dos amigos a levantar, visto de uma lixeira onde as famílias mais pobres viviam (uma realidade sul-americana de então; cresci a ouvir falar das pessoas que viviam nas lixeiras de Lima), com os arranha céus da cidade rica ao longe no horizonte. O quadradinho é em tudo igual ao da chegada de avião, mudam apenas as fardas dos guardas que policiam os favelados das lixeiras.
Mas também existiu ativismo. Carvão no Porão denuncia a escravatura de africanos. O Lótus Azul, passado na China aquando da invasão japonesa de 1937, é um livro político. Os japoneses são mostrados como brutais e até a saída do Japão da SDN lá consta. Hergé foi acusado de ter escrito um livro com mensagem política pouco adequada para dar a ler às criancinhas. E há outros casos.
A Alemanha nazi e, mais tarde, a União Soviética são representadas pela Bordúria, a primeira n’O Cetro de Ottokar, a segunda no Caso Girassol. Neste livro, em plena guerra fria, com os bordurienses-soviéticos a tentarem apoderarem-se de uma arma poderosa descoberta pelo pacífico e distraído Girassol.
Além da presença da política e da História nos livros de Tintin, as personagens que Hergé criou, aparentemente simples, estão longe de lineares. Tintin, um repórter que nunca se vê a fazer reportagens, não hesita em usar o alcoolismo de Haddock quando pretende manipulá-lo para o convencer. Haddock, claro, é um alcoólico nunca totalmente recuperado, que se sente indisposto quando bebe um copo de água (em O Caranguejo das Tenazes de Ouro), e que nos diverte com a invenção de uma lista infindável de insultos virulentos.
O que falta nos livros de Tintin são as mulheres. Existem poucas, sempre longe de atraentes, autoritárias, levemente assustadoras. Certamente algumas observações psicanalíticas poderiam advir deste facto. Mas eu, que não sou apoiante de obliterar as obras passadas que não mostrem (nem poderiam mostrar) a moral e os valores do início do século XXI, pendo mais para a inserção de Hergé dentro da sua época, até para evidenciar como estes apagamentos das mulheres são incorretos e injustos e empobrecedores. Hergé mostra o mundo quando se considerava que todo o espaço visível e público era naturalmente só ocupado por homens. E, na verdade, é bom para usar como caricatura da atualidade. A ausência de mulheres nas chefias e administrações das empresas (por todo o mundo), a falta de representação das mulheres no poder político, a naturalidade com que se excluem as mulheres de eventos mediáticos (a quantidade de painéis inteiramente masculinos, da política às conferências aos programas de televisão) faz-nos corar de vergonha alheia. Não estamos assim tão distantes de Hergé.
No entanto a vida de Hergé com as mulheres aparece nos livros. O divórcio e o segundo casamento, que provocaram uma crise no católico George Remi (o nome verdadeiro) originaram Tintin no Tibete, uma das melhores histórias de amizade da literatura, com desenhos ou não. O branco das neves do Tibete são uma procura de pureza por Hergé; e a busca incessante de Tchang (o amigo chinês cujo avião se havia despenhado) por Tintin, uma prova da lealdade que Hergé quebrara com a primeira mulher. Atualmente ainda há quem pretenda que deve chegar, que devemos aparecer apenas desta forma indireta, afinal as mulheres que se expõem publicamente não se podem queixar se lhes atirarem lama, em boa verdade os homens têm o direito ancestral de insultar mulheres sem consequências e a ficarem muito ofendidos se as mulheres tão somente descrevem a realidade a uma luz que lhes é desfavorável.
No ponto das mulheres, Hergé e Tintin são um ótimo ‘not to’ para mostrar. Mas mostre-se, e leia-se. Pelos desenhos e a arte da ligne claire, pela representação dos países onde Tintin teve as suas experiências, pelo que se aprende da História, pelo humor, até por serem um testemunho histórico da forma como se viam determinados grupos na sociedade. E porque são livros que falam de amizade e lealdade e da procura do Bem.