Ciclos, novas direções, ruturas

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Imagem de Maria João Marques

Não sou uma pessoa etérea e espiritual. Sou uma pessoa física, que dá importância à pele, ao toque eletrizante do desejo, à intimidade dos fluidos, aos contactos protetores e a explodir amor que se têm com os filhos, os beijos, as bochechas, os abraços, despentear-lhes o cabelo. (O meu filho mais velho reivindica permanentemente que eu não o embarace com beijos e abraços quando o vou buscar às aulas ou a menos de 50m do colégio. Debalde, de vez em quando desobedeço-lhe, que a função das mães é embaraçar os filhos. Fica aqui a denúncia pública desta quezília familiar.)

(Bom, na verdade também sou espiritual. Nos meus tempos praticantes, quando fazia Exercícios Espirituais, tinha intensas interações com esse tremendo sedutor que é Deus. Andava, com a contemplação inaciana, vários dias em alegre e íntima cavaqueira com Jesus Cristo. A tal ponto que, uma vez, com o namorado nos mesmos exercícios, ele se enciumou por eu de repente ter saltado para o século I e estar íntima, a maior amiga, um bocadinho in love, na verdade, de Jesus. Mas, enfim, durava três dias. Viver na cabeça e na imaginação – mesmo se fértil, como a minha – mais do que esse tempo torna-se entediante.)

Também sou sensível ao espaço e ao tempo. Como tenho uma necessidade grande de beleza, crio sempre para mim espaços bonitos e apetecíveis. Nos locais feios, incaracterísticos ou que por alguma razão me agridem o sentido estético, tenho tremenda dificuldade em permanecer.

Com o tempo é o mesmo. Sou impaciente e dedico um particular e fulgurante ódio de estimação a todas as pessoas que me gastam o tempo inutilmente. Seja cinco minutos, seja dois anos. E não, há circunstâncias em que não se aprende nada de valor, não nos acrescentam nada, nem experiência-somatório-dos-nossos-erros, não são absolutamente nada além de tempo perdido (daquele que mais tarde não se procura nem em sete volumes escritos por Proust).

Por isto tudo, gosto dos marcos temporais. Dos civis, claro, dos meses e sobretudo dos anos. A quantidade de vezes que me dou a mim própria, para terminar alguma tarefa pendente ou longa, ‘até ao fim do mês’ (o presente ou, por vezes, um ou dois a seguir, se se tratar de tarefa árdua e trabalhosa). Mas também me agarro às datas da vida. As boas e as más. As boas celebram-se, sempre. As datas neste caso têm a serventia de nos fazer valorizar o que devemos. O tempo é o teste de tudo e o que lhe resiste o mais valioso. As datas más são enterradas, engavetadas, regadas com ácido sulfúrico, rasgadas (o que melhor se adequar) ao fim de períodos de tempo certos. Há eventos que não devem durar um mês, outros três, para serem ou resolvidos ou obliterados.

Também há os círculos de tempo que curiosamente se estabelecem na vida. A conceção filosófica de tempo no Ocidente é linear. No Oriente é cíclica, sobretudo no hinduísmo (que é simultaneamente filosofia, com várias escolas, incluindo a yogacara, e religião). Olhando para o mundo e para as nossas vidas fica difícil não atribuir credibilidade a esta intuição oriental. Não é só a assunção de que a história se repete, é que se repete em círculos; vejamos, por exemplo, a simpatia pelos fascismos do início do século XX (na altura explicada, mal como se vê, pelo cataclismo da Primeira Guerra Mundial) que regressou no início do século XXI (sem guerra mundial). Os ciclos de destruição pela poderosa Kali e de criação por Brahma. Os ciclos dinásticos do pensamento chinês, que vão do imperador guerreiro que estabelece a dinastia, passa pelos descendentes que lhe vão espatifando o legado até ao último imperador, que finalmente perde o Mandato do Céu (as per Mencius) e é deposto pelos súbditos.

Nas vidas, pelo menos na minha, sucede o mesmo. O meu mestrado, desde que o comecei até que o defendi, foi um ciclo turbulento e de alto impacto, com eventos e pessoas que ficaram contidos somente nesse ciclo. A minha vida no fim do mestrado era apenas vagamente semelhante à do início. Ontem mesmo terminei um pequeno ciclo que se iniciou em setembro do ano passado, com o regresso da viagem a Taiwan que, por razões pessoais várias, teve momento assaz desagradáveis. Um dia depois de ter entregue a versão final do meu ensaio sobre a viagem, já com as últimas ameaças de Xi Jinping ao governo de Taipei, um assunto pendente surgido neste período teve desenvolvimentos e outro resolveu-se definitivamente. Resolveu-se mal, mas foi um alívio ainda assim. É preferível que algo se resolva de modo que nos agride e desagrada do que manter pendente e indefinido. Não há realidade nenhuma que períodos de tempo e suspensão não corrompam. Fujam dos mantras xanti xanti que vos dizem o contrário.

E, por fim, e foi este o motivo de ter começado este texto, sim, aqui até se pode acreditar nas conversas xanti xanti. Os ciclos de tempo civis são úteis. Os finais e início de ano são, para mim, ótimas oportunidades para balanços, arrumações, finalizações, recomeços, ruturas. Sobretudo para nos entregarmos a novas direções. Pessoalmente, as datas e os eventos e os ciclos que ocorrem na minha vida são mais propensos a provocar mudanças, mas já me sucedeu, e por várias vezes, nas sucessões de ano perceber que certos fardos (de origem sortida) do ano que terminou não seriam carregados para o novo. Confesso que as minhas resoluções de ano novo são geralmente pela negativa, do género ‘isto e aquilo, nem pensar em repetir’.

Cada um sabe de si e como lida com o tempo. Eu prefiro continuar a ter estas várias fronteiras temporais que me ajudam a viver e, às  vezes, sobreviver. E nos dão choques com tasers ocasionalmente para nos recordarmos que temos agência sobre o nosso tempo.

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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