Joãozinho

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Crianças com cancro internadas em contentores – é esta a imagem que tento recriar na mente, mas não consigo. Entro e saio do Hospital de São João há anos e lá está o local das obras a anunciar a futura ala pediátrica, nada mais.

Descubro, em notícia dada ao JN recentemente, que isto dura há 8 anos! António Oliveira e Silva, presidente do Conselho de Administração do São João diz que “em abril será transferido para o edifício principal do hospital o internamento pediátrico oncológico, permanecendo nos contentores provisórios desde 2011 o restante internamento de pediatria”.

Não conheço o presidente do CA do São João. Não falei com o presidente da Câmara Municipal do Porto. Não enderecei pedidos de esclarecimento aos sucessivos ministros da saúde, governos ou mesmo ao presidente da República. Mas confesso que me chateio com a inércia, com a pouca vontade, com a falta de prioridade dada ao caso. Isto é mandatário, é óbvio em qualquer ponto do mundo.

O tempo para a indignação não morre. As culpas por cá continuam a passar pelo buraco da fechadura, nesse hábito secular tão nosso de chutar para o lado. Somos bons a realizar eventos, receber turistas, afirmamos o país pela paz e boa vida. Portugal está na moda e tem slogan para tudo! Mas depois empurramos crianças para contentores, abandonamos os velhos, não visitamos doentes.

Ninguém se mexeu para dar preferência à obra, para tirar pacientes oncológicos de pré-fabricados, parar a quimioterapia em corredores, deixar de ver o lixo hospitalar circular por espaços apertados, entre miúdos que lutam para viver.

Um hospital é um local de vida e óbito. Nasce-se, luta-se e morre-se no mesmo espaço, todos os dias. Nos corredores há esperança, confiança, desconsolo e tristeza.

Não sou capaz de entrar e imaginar que esta é a última casa de algumas crianças ou o espaço que habitam para se agarrarem à vida. Não tenho filhos e não conheço nenhuma criança assim tão doente. Não compreendo a dor de um pai destes, mas sei ser solidário nela, com e por eles.

O direito à vida existe, a dignidade na morte também. Porque é que este assunto andou adormecido tanto tempo? Andamos, uma vez mais, com as baterias mal apontadas. E lá estaremos a cortar fitas dentro de algum tempo, reclamando as nossas boas acções, como se o passado se descolasse de nós, assim simplesmente.

É preciso mais, muito mais.

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Rodrigo Ferrão nasceu em 1983, é natural do Porto e frequentou o curso de Direito, mas virou a página e foi livreiro alguns anos. Rodeado de livros, dedicou-se à discussão literária através do mundo digital. Não totalmente realizado com o debate, decidiu escrever a sua própria poesia, seguindo-se de outras grafias. Gosta de ler, passear no campo e na cidade, escrever e viajar – não perde uma oportunidade para contar aquilo que vê. Sonha um dia largar o trabalho e ir por aí, divagando como pensa.

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