Xinjiang, Entre a Ásia Central e a Integração no Mundo Chinês, por Rita Machado
“Campos de Reeducação de Muçulmanos”. É a expressão que se repete nas mais recentes e variadas notícias sobre a atuação da China na Região Autónoma do Xinjiang, a província chinesa no extremo noroeste da China, bem no meio da Ásia Central e com uma população maioritariamente muçulmana. Diz o governo regional que se trata de “educar e transformar pessoas influenciadas pelo terrorismo e extremismo religioso”. No entanto, o real objectivo é impedir a prática de todos os preceitos islâmicos de halal, sublinhando a necessidade de pertença e integração na cultura chinesa Han (a etnia maioritária na China), abdicando do Islão, aprendendo Mandarim e demonstrando lealdade ao Partido Comunista Chinês.
Os relatos mais recentes revelam-nos uma situação dramática. Os Uigures (minoria étnica da China, de religião islâmica e que reside no Xinjiang, sendo nesta província maioritária) são presos e limitados nas suas necessidades mais básicas. A polícia está nas ruas, como se de uma zona de guerra se tratasse e o controlo da população é feito até, através de reconhecimento facial. Falar Mandarim, recitar o hino nacional, negar e refutar orações muçulmanas, ou até comer carne de porco são exemplos do dia-a-dia de quem foi levado para estes centros.
Ora, a China quer mostrar ao mundo, e em particular à Europa, como se deve agir perante as minorias. E diz, perentoriamente, “Olhem para a Europa, para a Bélgica, para Paris”. Os casos de violência na Europa servem de motor para a acção política de Pequim que, em face das adversidades, toma o ideal de unidade étnica como a sua melhor arma.
Xinjiang significa, em chinês, “Novo Território” ou “Nova Fronteira”, mas os Uigures consideram esta designação uma imposição chinesa, para demonstrar o seu poder na região. E assim, preferiram sempre chamar-lhe Turquestão Oriental ou Uiguristão. O termo Uigur surge por volta do século VII e designa os povos nómadas das estepes que viveram durante o Império Uigur (744-840), descendentes de turcos xamanistas e maniqueístas, na região da actual Mongólia, falantes de uma variante da língua turca (o Uigur).

A Região Autónoma do Xinjiang é a maior província do extenso território chinês. Possui características físicas que favorecem os ensaios nucleares que Pequim pretende desenvolver. Incorpora as maiores reservas de petróleo e gás natural do país. Partilha cerca de 5.600km de fronteira com oito países, a Mongólia, a Rússia, o Cazaquistão, o Quirguistão e o Tajisquistão, com o Afeganistão, o Paquistão e a Índia, três deles manifestas potências nucleares e cinco maioritariamente muçulmanos. Conta cerca de 8 milhões de habitantes entre Uigures, Cazaques e Quirguizes, representando o quarto maior local de concentração de população turca no mundo.
Esta evidência é demasiado forte para ser ignorada, mas também é demasiado grande para se conseguir neutralizar. Por isso, não falamos apenas de uma região vizinha da Ásia Central, mas de parte integrante da Ásia Central. Também é este posicionamento no mapa que torna esta região uma área distante dos principais pólos comerciais e culturais da China, tornando-a mais próxima inclusivamente de capitais como Bagdade e Nova Deli, que de Pequim. O desenvolvimento do Xinjiang, facilitado pelas ligações geográficas, históricas e culturais, tornou-se, por isso, mais dependente do sucesso dos países fronteira da Ásia Central que da própria China.
Ora, estes factos evidenciam desde logo um grande desafio para Pequim e para a unidade nacional chinesa. A determinação na construção de uma China unida e próspera, vislumbrada neste Xinjiang, fonte de matérias-primas e recursos energéticos, esbarra nesta proximidade a uma Ásia Central muçulmana.
É a História que nos explica o paradigma actual da Região Autónoma do Xinjiang e nos ajuda a compreender as suas conturbadas Relações Internacionais.

A força do Xinjiang Uigur é ideológica (ideia de pertença a um grupo), é demográfica (proximidade geográfica) é religiosa (comunidade islâmica) e é linguística (língua e escrita Uigur). Mas a incompatibilidade entre as práticas socio-religiosas Uigures e o plano de acção político de Pequim é evidente. Acontecimentos recentes, decorrentes da resistência e da afirmação Uigur, têm trazido uma nova dinâmica à relação Xinjiang – Pequim. A título de exemplo, os Uigures são obrigados a instalar aplicações de vigilância nos seus telemóveis. Em acções de rua, muitos Uigures ficam sem os seus passaportes (confiscados pelo Governo Regional), outros são presos aleatoriamente e levados para os campos de reeducação. Muitos estudantes Uigures que frequentam Universidades no estrangeiro foram chamados a regressar à China. E até a escolha de nomes para bebés está limitado, não estando autorizados nomes com conotação religiosa. Estes acontecimentos são cada vez mais perceptíveis interna e externamente, aumentando o interesse e a atenção dos observadores internacionais.
Em nenhum momento a integração do Xinjiang foi um processo pacífico, mas a resistência Uigur foi sempre mais forte em períodos de fragilidade do Estado Chinês, como as Guerras do Ópio no século XIX ou a guerra civil entre nacionalistas e comunistas nas décadas de 1930 e 40. Mesmo após a implementação da República Popular da China em 1949, a região continuou a ser palco de graves incidentes. E, a partir dos anos 1990, dois factores determinantes marcam todo este processo de integração. O colapso da URSS (1991), trazendo consigo a sombra do separatismo e os ataques às Torres Gémeas (2001), colocando o terrorismo islâmico no centro da agenda política internacional. O fim do mundo bipolar e o aparecimento de novas potências emergentes proporcionou a reflexão sobre o nacionalismo chinês e o intuito de Pequim em garantir uma sociedade culturalmente homogénea.
Para os Uigures, o Islão é o meio de expressão da insatisfação sentida colectivamente, reforçando as suas redes sociais. Para a China, é o meio que justifica a luta pela independência Uigur. Já o investimento económico no Xinjiang é, para a China, demonstração do seu interesse e defesa da região. Para os Uigures, é uma forma de aumentar as disparidades e as desigualdades económico-sociais Han-Uigur no território.
Mas, na verdade, a realidade do Xinjiang, mostra-nos uma aproximação maior dos Uigures à sua identidade nacional, do que à própria identidade islâmica. Os Uigures vivem sob o controlo de um Estado secular que determina a sua prática religiosa, o planeamento familiar e social da comunidade e que persegue quem ameace a segurança nacional. Evidente com a criação dos tais campos de reeducação. Assim, reforçam a sua unidade através da luta por um Estado Uigur independente. O seu sentido de pertença à nação Uigur ganha mais força que a própria pertença à comunidade islâmica.
A relevância que o Xinjiang tem ganho decorre fundamentalmente da sua localização geopolítica que garante ao território um papel fundamental no “Novo Grande Jogo” da Ásia Central. A China definiu uma estratégia clara, de longo prazo, para se afirmar como uma verdadeira potência mundial. “One Belt, One Road”, projeto chinês com investimento massivo que pretende ligar a China aos países da Ásia até à Europa, é a evidência mais clara de que estamos perante um país que sabe para onde quer caminhar. Recuperando a força da Rota da Seda, o Xinjiang, atravessado por estas ligações internacionais, recoloca-se no centro nevrálgico deste investimento. É a partir de cidades como Urumqi (capital da província), Almaty ou Kashgar que a China chega à Ásia Central, à Europa e até a Portugal, com quem ainda em Maio “conversou” sobre as vantagens/proveitos do Porto de Sines.

Em que se traduz então a política chinesa para o Xinjiang?
Talvez a principal medida, pela constância ao longo dos anos, seja a migração Han para o território. Mas se, para a China, estes fluxos migratórios promovem o investimento e a modernização da região, para os Uigures o que fica claro é o aumento das disparidades sociais. São os Han quem ocupa os principais cargos públicos do governo regional. Que mais não seja, porque para um Uigur ser parte do governo deve renunciar desde logo ao Islão. Ora, esta abdicação da sua identidade também contribui para a perda de carácter e de confiança junto dos seus. A crença religiosa e a lealdade ao partido comunista chinês tornam-se mutuamente exclusivas.
Em 2000, o governo decide impor regras ao sistema de ensino e limitar o sistema bilingue. Nas escolas, devia leccionar-se apenas em Mandarim, e, por consequência, nas ruas e nas repartições públicas devia falar-se apenas Mandarim. O objectivo é facilitar o entendimento entre todos os cidadãos. Mas, naturalmente, a interpretação Uigur é outra, e esta medida foi entendida como mais uma forma de aniquilação da sua cultura. A solução passa, então, por enviar as filhas para a “escola da minoria”, tendo a mulher o papel de manter o passado da família e preservar a língua nativa, e os filhos para a “escola chinesa”, uma vez que seria o homem a sair de casa para trabalhar e sustentar a família. As condições impostas resultam neste pensamento e forma de actuação. As disparidades socias são assim, cada vez mais crescentes, não só entre Uigures e Han, mas também no seio dos próprios Uigures. Com esta política social, as mulheres Uigur ficam demasiado limitadas. Por exemplo, do ponto de vista profissional, é-lhes desde logo vedado o acesso a postos de trabalho do governo, ou repartições publicas, pois não dominam o Mandarim. Este plano educacional foi concluído em Maio de 2002, quando as Universidades deixaram de leccionar em Uigur e os próprios professores foram obrigados a adequar o nível de Mandarim.

Mais recentemente, nesta procura da diluição de diferenças entre as várias etnias, o governo decidiu atribuir um subsídio social que estimula os casamentos interétnicos. Qualquer casal Uigur-Han, recebe uma quantia em dinheiro aquando do casamento.
É improvável que a tensão no Xinjiang se dissipe num futuro próximo. Os Uigures estão longe de assimilar a cultura chinesa Han e as políticas repressivas não vão garantir a integração Uigur. A independência também não parece ser um cenário possível. O ponto de equilíbrio entre as ambições Uigur e Han poderá passar pela definição de um patamar de autonomia cultural, social e política que permita conciliar (na linha dos princípios confucionistas, que são a matriz filosófica da China) o governo do PCC e a realização da cultura islâmica Uigur. A possibilidade de atribuir ao Xinjiang o estatuto de Zona Económica Especial, com legislação económica e tributária própria, foi já considerada, o que, para além da autonomia política prevista enquanto Região Autónoma, fortaleceria a autonomia económica, transferindo para o poder regional a gestão de matérias tão determinantes para o crescimento e a estabilidade social.
O poder político e económico da RPC é crescente quer numa escala regional, quer mundial. As consequências das suas políticas, internas e externas, influenciam a conjuntura internacional num mundo cada vez mais próximo e interventivo. Mas também são determinadas por este projecto desafiante que exige o correlacionamento do exercício de liberdade de todos os cidadãos, com a construção da Nação chinesa e o reforço da unidade territorial.
Olhar a situação do Xinjiang ajuda-nos a compreender a estratégia da política interna de Pequim, mas também nos revela eventuais tomadas de decisão e posicionamento num cenário global. A República Popular da China é um país carregado de dicotomias e o Xinjiang tem-se revelado um dos melhores exemplos.
Rita Machado
33 anos, casada, mãe em construção.
Trocou a Beira Alta pela capital há 15 anos, mas regressa todos os meses, para repor os níveis de oxigênio.
Licenciada em Relações Internacionais e Mestre em Estudos Asiáticos, decidiu que profissionalmente seria bancária.
Acérrima sportinguista. Em casa, ele cozinha, ela desfruta.
“As coisas da China” são um desafio fora d’horas.