Pelas reações da classe política à publicação do novo livro de Cavaco Silva, Quinta-feira e outros dias, ficámos a saber que é falta de “sentido de Estado” tornar públicas conversas ocorridas no desempenhar de altos cargos de representação política. Disse-o António Costa, acrescentando que é “dever de lealdade” não o fazer, que as “conversas são entre os dois e com mais ninguém”. Marcelo Rebelo de Sousa confirmou e evocou uma espécie de pacto vitalício que o proíbe de alguma vez relatar conversas tidas. O presidente do PS foi ainda mais longe e disse que fazê-lo é “delação”.
Mas o que é isto, um pacto de silêncio entre tudo bons rapazes? Como é que presidente da república e primeiro ministro assumem isto perante as câmaras de TV com ar de orgulho e superioridade ética? E os media vão na conversa. Cavaco Silva foi torturado por Clara de Sousa durante a entrevista de apresentação do livro em que a jornalista deu voz e corpo à vexação da classe política perante este traidor de clã. Isto é de resto a atitude comum nos media portugueses que teimam em reduzir-se a satélites da agenda da classe política dominante. Um compadrio que atingiu o seu máximo expoente com o caso Sócrates e que levou a que uma das raras vozes dissidentes, Manuela Moura Guedes, se tornasse o alvo a abater do aparelho e por consequente uma pária dentro da sua própria classe profissional.
Sem surpresa, Passos Coelho, apesar de ser uma das figuras mais visada pelos relatos de conversas e episódios de bastidores, tendo Cavaco revelado que por três vezes ponderou demitir-se, foi o único a demarcar-se aplaudindo a publicação do livro que considera, como é obvio, “muitíssimo relevante” para o entendimento que os portugueses têm sobre esse período de governação.
Relatar acontecimentos de bastidores ou conversas tidas no papel de representante político dos portugueses só é traição para quem inverte o sentido da relação de lealdade (da vertical entre representantes e eleitores para a horizontal entre os próprios actores políticos), e tem como aceitável haver nas relações entre representantes uma caixa negra de informação cujo acesso é negado aos eleitores. Não é. Os representantes políticos, mesmo que no exercício de altas funções, são isso mesmo: representantes. O seu poder acaba e começa com o seu dever de representação que inclui o dever de transparência, de prestar contas. Não há (não deveria haver) terreno para pactos internos, confissões, tachos partilhados, palmadinhas nas costas, e mesmo golpes de operetta, mantidos fora do escrutínio dos eleitores. Que um primeiro ministro e um presidente da república venham orgulhosamente assumir os seus pactos de silêncio é simplesmente estonteante.