1. Na China, sê chinês
Aterro em Macau e descubro a aventura radical que consiste em atravessar numa passadeira de uma rua para a outra. O trânsito é caótico, os carros não respeitam as passadeiras, e, para cúmulo, conduzem à direita, um português olhar para o lado errado da estrada é o que basta para ficar espalmado no alcatrão. Percebi claramente que era necessário criar uma técnica de sobrevivência e usei o que estava mais à mão – chineses. Ao chegar a uma passadeira escolhia o grupo de chineses mais bem composto em termos numéricos, furava à cotovelada até ao centro do grupo e só atravessava quando eles avançassem, o que às vezes era quando menos se esperava, vinham três carros a grande velocidade e eles, cá vai disto, passadeira adiante como se nada fosse. Portugueses aconselham-me a ser confiante, a impor-me ao trânsito para atravessar a estrada. Eu prefiro guardar a minha confiança para outras paragens e manter o corpo intacto, coisa que dá jeito para viver. O que é certo é que o meu escudo humano composto de chineses confiantes salvou-me várias vezes de morrer em Macau.
Deve ter sido quando me queixei do trânsito maníaco que me explicaram o sistema chinês na estrada. Se atropelarem uma pessoa, e ela sobreviver, o mais certo é o condutor voltar atrás e matar a vítima. É que na China o condutor do carro será responsável pelos cuidados hospitalares da vítima de forma vitalícia. Exacto, para o resto da vida. Posto isto é fácil compreender que muitos decidam matar as vítimas, pagar o funeral, uma compensação à família e está destacado o assunto. Para todos os efeitos não será um assassinato mas um acidente de viação. Calma, e se houver testemunhas? Se a vitima sobreviver e o condutor fugir, se for auxiliada será quem assistiu a vitima o responsável pelos cuidados médicos até ao fim da vida. Nestas condições é normal ninguém auxiliar e ficar tudo a assobiar para o lado. É nesta altura que percebo a confiança dos chineses nas passadeiras, podem conduzir os carros como loucos mas ninguém quer ficar responsável por despesas medicas para a vida.
Volto a protestar que esse sistema é insane e respondem-me “Ah, mas em Macau é diferente. Isso só acontece na mainland”, que é como quem diz, na China profunda. Fico mais descansada. Mas depois acrescentam que em Macau só tenho de ter cuidado a conduzir porque os chineses atiram-se para cima dos carros para serem atropelados e terem o “seguro de saúde” vitalício. Mau, como assim? “Ah, é muito normal isso acontecer. Por isso os carros têm câmaras para filmar essas tentativas de ‘atropelamento’. Mas não te preocupes, faz como eles e corre tudo bem”. Ou seja, não vale a pena lutares contra o sistema, o sistema dá cabo de ti de uma maneira ou de outra.
Resta acrescentar que o português, residente em Macau há sete anos, que me explicou a parte dos falsos atropelamentos, já foi multado em 300 patacas (30 euros) por atravessar uma estrada fora da passadeira. Perante tudo o resto, é capaz de fazer sentido.