Crónica de Nova Iorque.

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Nova Iorque é destino que repito sempre. Que desde miúda tive a sorte de aprender a amar. Décadas volvidas, ainda vibro com as ruas, as pessoas. O meu fascínio é constante e suspeito que eterno; a cidade continua livre, irreverente e barulhenta. Mas o mundo é outro e a visitante também. 

Entre a minha juventude e o dia de hoje, assistimos a verdadeiras odes à cidade em forma de séries, filmes e músicas. Obras de nova-iorquinos sobre nova-iorquinos lançadas ao mundo para sucesso imediato e idealização do sonho americano. Conhecidos como rabugentos e barulhentos, os nova-iorquinos sempre encararam com humor a relação amor-ódio com a cidade, verdadeiros amantes insubordinados e incondicionais. 

Para os humanos de fora de Nova Iorque, a cidade tornava-se mítica. Na década de oitenta, através dos filmes. Nos anos noventa e dois mil através das geniais séries ali filmadas. 

Sou, assim, o produto de décadas de entretenimento e umas quantas visitas radiantes. Não sou a única. Há uma categoria de pessoas que fica alterada quando perspectiva uma viagem a Nova Iorque. É a antecipação do frenesim, da liberdade e adrenalina de estar no centro do mundo. 

Assim que aterro, dou de caras com a rainha de Nova-Iorque em conhecido anúncio a uma marca de lingerie. Sarah Jessica Parker será para sempre Carrie Bradshaw e Carrie Bradshaw – a par de Seinfeld – será para sempre o retrato da Nova Iorque de há duas décadas. 

Vou explorando as ruas e recantos com Sarah em cada esquina e vou constatando que a cidade já não é a mesma. Carrie Bradshaw já não conseguiria viver em Manhattan. Metade das suas crónicas seriam rotuladas de histericamente feministas. Seria aconselhada a ter calma por estarmos, para alguns, numa época complicada para os homens. As feministas mais extremistas iriam criticar a sujeição ao ideal de casamento e a superficialidade consumista da escritora. Ficaria assim, por falta de trabalho aliada à cavalgada da inflação, impossibilitada de comprar os seus queridos Manolos e de ter o guarda-roupa mais invejável da história da televisão. Carrie iria estar também absolutamente desiludida com a situação política do país. Com a intolerância e o medo instalados. Imagino-a na Women’s March de Janeiro passado com modelito mais em conta mas com a mesma irreverência. Com as amigas que são família, o pequeno Brady e até a diva Elizabeth Taylor. Passados uns meses, todos juntos de novo, agora na plateia a apoiar Miranda, perdão, Cynthia Nixon, na corrida ao Governo do Estado. A realidade às vezes consegue superar a ficção!   

Viajo sozinha, com os sentidos virados para o rebuliço de que tanto gosto. Desta vez, porém, constato que os nova-iorquinos estão mergulhados num diálogo cauteloso e triste com a cidade. Em particular no dia da confirmação de Kavannaugh, o clima é pesado. Perco a conta aos tote bags e t-shirts com dizeres feministas. Espanto-me com a quantidade de pessoas que me diz querer vir viver para a Europa. Até agora todas as minhas conversas com nova-iorquinos incluíam queixas mas, apesar do tough love, abandonar a cidade estava fora de questão. Desta vez, o cansaço e a desilusão começam a levar a melhor. 

No bairro financeiro, o clima é mais optimista. Mas até em Park Avenue dois homens na mesa ao lado discutem investimentos com a cautela de quem espera a viragem. De quem sabe que o plano económico de Trump vai ter um preço muito alto. Para já, com um aumento do défice de 17%. Para eles, do coração da alta finança, com uma correcção bolsista imprevisível e inevitável. “Let’s do it while we can”, dizia um deles. 

No resto da cidade, o acordar. O perceber que os direitos civis mais básicos não estão assegurados enquanto Trump estiver no poder. Desvaneceu-se a  antiga esperança de ter um presidente meio desajustado mas incapaz de alterar o core constitucional, de ameaçar os direitos mais básicos. Até à confirmação de Kavannaugh esperava-se que Trump deixasse a população progressista em paz na bolha nova-iorquina, como bem retratou este sketch do Saturday Night Live. 

Com a confirmação de Kavannaugh e a insanidade de Trump, passou a ser oficial: nada está garantido, tudo está em causa. Roe Vs. Wade. Os direitos da comunidade LGBT. A presença em organizações internacionais. A mais empedernida filosofia americana de liberdade e laissez-faire. 

Tentando perceber se tudo isto que sinto em relação ao clima instalado na cidade é mais do que mera impressão, procuro respaldo estatístico para o meu sentimento empírico: Nova Iorque é, segundo estudo do Departamento de Saúde Pública, a cidade mais deprimida dos Estados Unidos. Um em cada cinco habitantes da cidade sofre de perturbações da saúde mental, nomeadamente depressão, abuso de substâncias ilegais, pensamentos suicidas ou outras manifestações similares. Apenas menos de quarenta porcento procuram ajuda, números, aliás, muito similares aos portugueses. A crise de opióides está instalada e o número de sem-abrigo aumenta. 

Na economia, os números são particularmente preocupantes nos Millenials, com rendimentos vinte porcento inferiores àqueles auferidos pela geração anterior. O número de licenciados com salários baixos aumenta e o endividamento dos licenciados aumenta: a dívida total das cinco regiões do Estado de Nova Iorque atinge, em 2015, os catorze mil milhões de dólares. A nível nacional, o número de estudantes com empréstimos estudantis cresce dez porcento ao ano. O mercado imobiliário, esse, está aqui detalhado e traduz números nunca antes vistos. 

A reacção faz-se sentir, apesar da tristeza que impera. No espaço público, o diálogo recupera alguma importância. Simbolicamente, cada vez mais cafés e restaurantes abdicam do Wi-Fi. Talk to each other, embrace each other, care about each other, dizem alguns cartazes. Sozinha, sem internet e sempre em movimento, faço do meu livro companheiro de viagem. Nem de propósito, o Just Kids de Patti Smith é uma história de amor na Nova Iorque dos anos 60/70. Fala da relação com Robert Mapplethorpe (o tal da polémica de Serralves), de arte, da comunidade artística nova-iorquina. Fala de inocência, do bem, do mal, de rebeldia e desamor. Da cidade em mudança, da comunidade artística em protesto contra a guerra. 

Também em 2018 a comunidade artística se mobiliza. No MOMA, a exposição de Charles White é comovente homenagem à incrível e torturada comunidade afro-americana. No Met, Anna Wintour encarrega-se de abordar a relação entre a religião e a moda. No Whitney, o esforço para integrar mais obras de artistas do sexo feminino, nomeadamente com a exposição das obras das Guerrilla Girls, que nos anos setenta alertavam o dito museu para a lacuna que agora vai sendo preenchida. 

Por todo o lado, revolta contra o establishment, contra a relativização dos direitos das pessoas. À porta da Trump Tower um mar de selfies, alguns gestos obscenos e vendedores de merchandising anti-Trump. Um louco corajoso destoa ao erguer uma faixa de apoio à criatura que dá nome ao edifício. O isolamento desse apoiante e da criatura que dá nome à torre é crescente. Todos os quadrantes da sociedade, todos os canais de televisão – menos, claro, a Fox News – aumentam a incredulidade perante os tempos que correm. Há momentos televisivos de cortar a respiração. Como o do programa da manhã da NBC – o Today Show – que exibe peça acerca do homem que foi mandado parar pela polícia por ser negro e estar a transportar crianças brancas. Mediante denúncia anónima, a polícia foi obrigada a parar o baby-sitter para recolher informações. Era baby-sitter, podia ser pai. Acabada a peça, as caras dos apresentadores em silêncio ensurdecedor: uma mulher negra e uma mulher branca, um homem branco e um homem negro. Os quatro num misto de espanto, repulsa e tristeza. 

Termino a viagem no meu lugar preferido de Nova Iorque: Washington Square Park. Tenho sempre os momentos mais mágicos quando lá me sento com tempo e coração aberto. Desta vez, há um piano em plena praça. Um homem vestido de manga cava senta-se e começa a tocar o Imagine. A música arrepia-me, o talento dele também. A relevância da letra, a coincidência de ter lido na véspera o relato de Patti do momento em que o mundo chorou a morte de John Lennon. Tudo está no seu lugar. A canção não podia fazer mais sentido e toda a praça o sabe. A nostalgia instala-se. O silêncio dos espectadores é de ouro. Alguns corpos abanam-se ligeiramente ao som do piano. Que pianista. Que voz. Que momento. Que cidade!

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Teresa Morais tem 35 anos, é jurista, tradutora e activista. Depois de viver em São Paulo e em Londres, voltou, há dois anos, à Lisboa que a viu nascer. Gosta de biografias, boas revistas, boas séries, bons políticos e bons amigos. Ouve música de todos os estilos, a toda a hora, em qualquer lugar. Está no Capital Magazine por acreditar ser esta a hora de falar de causas e de fazer melhor política em Portugal.

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