Devo confessar: a cidade que associo na minha cabeça ao Gonçalo Castro Fonseca, padre jesuíta, não é Damasco, a sua cidade atual, onde reside no meio da (aparentemente eterna) guerra civil síria. O Gonçalo está em missão (por três anos, pelo menos) em terras de Bashar Al-Assad, trabalhando num centro criado pelos jesuítas para darem apoio a crianças sírias. Mas, dizia eu, é-me estranho colocar o Gonçalo num cenário apocalíptico. Em vez disso, associo-o a Roma, ao tempo quente do fim de verão de 1996 e aos passeios pela cidade. Para mim, a Fontana di Trevi de Roma, por exemplo, vai evocar sempre o Gonçalo de Damasco. Vínhamos da festa da L’Unitá (sim, já participei em festas comunistas) nas margens do Tibre, na madrugada de uma noite de princípios de setembro, a caminho da paragem do transporte para o albergue meio hippie meio beato onde dormíamos, e o Gonçalo, ditatorialmente possuidor do mapa da cidade, fez-nos andar e andar e andar até, de súbito, depararmos com a Fontana di Trevi, iluminada, dramática, colossal, demasiado grande para a piazza, que estava vazia sem mais turistas. Não voltei a ver a Fontana di Trevi tão bonita e sedutora.
Outro momento romano de relevo foi o assalto noturno que o Gonçalo e outro amigo do grupo fizeram ao Coliseu. Galgaram os altos portões trancados, saltaram para dentro e foram incomodar os sem abrigo que lá se albergavam. (Bendito mundo antes das necessidades securitárias que vieram com o 11 de setembro.) Ao saltar os portões na saída, o Gonçalo fez uma ferida. Desinfetei-lha com whisky, esse bem essencial que, claro, havia pelo grupo.
Mas a estranheza de colocar o Gonçalo Castro Fonseca em Damasco depressa passa quando comecei a conversar com ele, numa manhã de agosto na sala Van Gogh do Centro Universitário Padre António Vieira (sítio onde nos conhecemos circa 1995). Afinal começa por dizer que aceitou falar comigo para a Capital Magazine – informado que estava que eu não queria que a conversa fosse só a repetição das entrevistas mais factuais que já tinha dado ao DN e ao Expresso – porque se sente impelido a ‘dar voz, à advocacy, no sentido de repor a justiça’. O Gonçalo quer falar pelos seus sírios, portanto. Roma esfuma-se perante o homem e o padre que deixou de dar qualquer coisa por garantida em Damasco (já lá vamos).
Mas a voz também é importante para o próprio Gonçalo. Desde que está em Damasco escreve o blog Varekai. Não é exatamente um blog de reportagem sobre a sua missão. ‘Há acontecimentos que eu não narro’. Nem é uma experiência confessional. ‘Não falo da minha dimensão mais profunda espiritual.’ Mas é um meio termo. Fala da descoberta do medo, da alegria, da questão da linguagem (está a aprender árabe on the job). O blog ajuda-o a estruturar porque, diz, ‘é o único lugar onde penso em português; ajuda-me a dar palavras às experiências que vou sentindo’. Foi um meio criado porque o Gonçalo é ‘desligado’ e assim era uma boa maneira de ir dando notícias, mais apelativo que um grupo do whatsapp. No entanto, apesar do intuito inicialmente utilitário, o blog ganhou serventias mais profundas. Gonçalo Castro Fonseca reconhece que escrevê-lo ‘ajuda a perceber o que está a passar em mim, mais do que a realidade mas perante a realidade’.

Realidade que é agreste e não admira que obrigue a introspeção. O trabalho de Gonçalo, num centro do Jesuit Refugee Service que apoia crianças na escolaridade que muitas não têm nem tiveram (apesar de irem necessitar destas competências num futuro de, espera-se, paz), é sobretudo de gestão da casa. Com as crianças tem um trabalho mais organizativo e menos de proximidade, até pela dificuldade da língua. ‘Para eles eu sou um ser exótico’, confessa. Contudo, com os trabalhadores do centro tem uma relação muito mais one to one, de grande proximidade e dá apoio espiritual apesar de não se colocar no papel de diretor espiritual; afinal os sírios, no meio da guerra, ‘passam por experiências espirituais muito fortes mas não sabem dar nome, não têm gramática, e vamos descobrindo essa gramática juntos’. (Estão a reparar novamente na incidência nas palavras, não estão?) Mas sobretudo são amigos. Gonçalo conhece as suas casas, as suas famílias, saem juntos, têm um grupo de whatsapp, são ‘buddies’. E ajudam-no de volta, não só pelo trabalho que fazem no centro como com a aprendizagem de árabe.
No centro do JRS trabalham homens (menos de metade) e mulheres, sendo a maioria das mulheres cristãs. Pergunto se a relação com os colaboradores homens é igual à relação com as colaboradoras. Não, diz Gonçalo Castro Fonseca. Os homens são mais alegres e descontraídos, as mulheres muito mais reservadas, sejam cristãs ou muçulmanas. A proximidade com os homens foi imediata, com as mulheres demorou mais. Mas lá chegaram, se bem que de uma forma mais comedida, ajudados pelas características do Gonçalo: mais velho, padre, é alguém que tem de guardar segredo, estrangeiro. E mostrando como os ímpetos pela igualdade de género são universais, uma vez ganha a confiança entre Gonçalo e colaboradoras, não deixam escapar a oportunidade de fazer revelações e reivindicações feministas.

À volta deste tema das mulheres questiono o que se passa com as viúvas dos sírios que morreram na guerra civil. Conseguem-se sustentar e aos seus filhos? São respeitadas? Gonçalo Castro Fonseca responde que sim, são respeitadas, os núcleos familiares são muito matriarcais, há uma grande influência europeia. Podem trabalhar nos empregos que existirem, que é uma situação muito generalizada, esta das viúvas da guerra, que nas ruas de Damasco se vêem muito mais mulheres que homens. Por outro lado, há uma estrutura comunitária importante na Síria, um país de gente solidária. A rede familiar também é fulcral. Vive-se dentro de famílias alargadas, onde todos são responsáveis por todos: ‘se a minha irmã perdeu o marido, a minha irmã e os seus filhos são minha responsabilidade’.
De resto, esta solidariedade dos sírios é abundantemente referida por Gonçalo. Simultaneamente com as perdas da guerra, vão reconstruindo a sua vida, mas ajudando também no cantinho dos outros. Os encómios do Gonçalo para os sírios são incontáveis: são mais fortes, mais alegres, com mais esperança – ‘afinal eles é que me dão esperança e força’, assume. Dão valor ao essencial. São muito ‘focados no futuro, voltados para a frente’, para reconstruir alguma normalidade. Se este objetivo é essencial, tem o senão de não dar espaço para integrar a sua história recente, para a introspeção. Por outro lado, perante a constante imprevisibilidade da guerra civil, os sírios desaprenderam de planear.
E têm pela frente a monumental tarefa do pós guerra da reconciliação difícil. ‘Reconciliação consigo próprios e com a sua história, há muita mágoa, há muita ferida’. ‘É o nosso trabalho’, diz Gonçalo. Impressiona-o sobretudo os homens de 20, 30 anos que perderam a adolescência e são os que querem sair da Síria a todo o custo. As crianças não tiveram infância, ‘mas tudo o que experimentam é até ao tutano’.

Em Damasco, Gonçalo não nota grandes crispações entre a população, ao contrário do que sabe existir noutras zonas ou cidades da Síria. Há um forte apoio a Bashar Al-Assad e eventualmente bastante constrangimento nas pessoas que teriam críticas para lhe apontar mas não o fazem porque naquela zona é malvisto. As clivagens entre cristãos e muçulmanos não existem em Damasco – desde logo porque Assad, sendo ele próprio de uma minoria, promoveu muito o bom entendimento entre as religiões e grupos populacionais. O que vai ao encontro da tradição síria: na velha Damasco há numerosos exemplos de igrejas ao lado se mesquitas, mesquitas xiitas e sunitas na mesma rua, igrejas arménias, igrejas sírias, igrejas ortodoxas.
Para Gonçalo Castro Fonseca o conflito é muito mais ao nível das ideias e das disputas de poder que ‘da realidade concreta do bairro’. De ideias e da sempiterna disputa entre sunitas e xiitas. Também já não vê a guerra como civil há muito tempo: ‘é uma guerra mundial que se está a passar dentro das fronteiras do país’.
E porquê a Síria, esse canto do mundo esquecido por Deus (not!) quando poderia estar num local consideravelmente mais seguro? E como a experiência síria interpelou este padre jesuíta concreto? Gonçalo compara a decisão de ir para Damasco à de entrar para a Companhia de Jesus há vinte anos, ‘porque não foi uma coisa que eu quisesse ou sequer pensasse nisso. Não foi por um sentido de aventura. Fui eu que me propus porque era a vontade de Deus.’ O Provincial da Companhia de Jesus concordou que na Síria era onde mais se precisava, mas tinha pensado em enviar Gonçalo para Marrocos ou para o Iraque, menos perigosos. Nota-se que para Gonçalo a sua decisão e disponibilidade foram as certas, e que seguiu o ímpeto de ir para onde supôs que Deus o queria, mas que está ainda a viver algo que não abarca totalmente; pacificamente constata: ‘não me é dado saber agora o sentido desta missão’.
A experiência dos perigos mortais da guerra civil está envolta na mesma nebulosidade que, paradoxalmente, não traz incerteza mas sim confiança. Antes de viver os bombardeamentos nunca tinha sentido verdadeiramente medo. No início ficou bloqueado, depois tornou-se mais prudente, ‘com uma prudência estratégica, por exemplo não regressar a casa durante os bombardeamentos’.

Esta vossa amiga, que andou há uns anos a estudar os efeitos traumáticos do shell shock (como lhe chamavam na Primeira Guerra Mundial), quis saber os efeitos mais profundos desta exposição aos bombardeamentos. ‘Muda tudo. É uma transformação que vem das entranhas, uma transformação ontológica.’ Aprende-se a ‘não ter nada por garantido, nem a própria vida, nem a vida dos meus, nem as minhas relações’. É uma experiência espiritual que tem que se lhe diga: ‘não ter nada por garantido permite esvaziar de tudo e, neste esvaziar, encher de plenitude. Chegar ao lugar do nada e perceber que o nada é tudo.’ Faço o reparo que estas descrições lembram o desapego budista. Gonçalo concorda, mas nota que esta dualidade nada/tudo é também o mistério da hóstia da comunhão. E os místicos também seguem o caminho de ‘esvaziar, esvaziar’. ‘Faz parte do processo silenciar. Tenho muitos ruídos, também das emoções. Mas quase tenho medo de chegar a esse lugar.’
O que Gonçalo tem por garantido é poder sair da Síria a qualquer momento, se o perigo for excessivo. Possibilidade que os sírios com que contacta não têm, e que, pela vontade de identificação com as pessoas a quem está ligado, Gonçalo até gostaria de nem isso ter por garantido, para partilhar com elas toda a incerteza da guerra. Mas é com convicção visceral que garante ‘não consigo não ver esperança ali, não consigo não ver futuro ali. Pelo modo como se falam, como se olham’. Inch’Allah.

O Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) é uma organização internacional da Igreja Católica, fundada em 1980, sob responsabilidade da Companhia de Jesus. O JRS tem como missão «Acompanhar, Servir e Defender» os refugiados, deslocados à força e todos os migrantes em situação de particular vulnerabilidade, estando atualmente presente em cerca de 50 países no mundo. (Ver mais aqui.)
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