Sofrer dói. Acho que posso afirmar isso sem provocar polémica. Claro que há diferentes graus e situações e nós, seres pensantes, tendemos a fazer escalas para ordenar aquilo que nos afecta ou conhecemos melhor. Não deixa de ser interessante, no entanto, como estamos mal preparados para as inevitabilidades da vida, somos inúmeras vezes engolidos pelo acontecimento. É talvez triste, mas pensamos mais em nós do que nas dores dos outros – porque só conhecemos totalmente a nossa cruz. Mas façamos por mostrar solidariedade, isso é uma das múltiplas possibilidades no sofrimento. Se não me posso substituir a ti, perceber a totalidade da tua aflição; pelo menos deixa-me dar uma palavra, um carinho, um conselho.
Parti um ombro, a andar de bicicleta. Último dia de férias em Espanha, viagem marcada no dia seguinte, de carro. Onze horas e meia com o braço ao peito, já sob o efeito dos remédios. Custou, sim. As horas na urgência, a notícia do médico, a aflição de quem estava comigo. Sofrer dói, uma vez mais. E não sabia que podia estar tanto tempo de baixa, fosse pela operação ou, no caso, esperar que tudo isto se cure.
Ao contrário do que afirmam, estar de baixa não é uma sorte. Ouvi isso algumas vezes, mas quase sempre respondi que boa sina foi ter caído no último dia. Não, este desastre correu bem no tempo. Deu-me oportunidade de fazer praia, fugir de alforrecas, experimentar novos desportos. Só no fim desenhei a sorte, mesmo depois de ter repetido aquele caminho e de o saber com peões e situações de perigo. Foi uma grande queda, precisei de ajuda para me levantar e percebi que não mexia o braço. Vinha aí uma nova aprendizagem, viver com o ombro partido. Mas tudo se faz, tudo se descobre.
Sofrer dói, mas é uma chance de parar e reflectir. Sem dúvida um tempo para escrever, ler, perceber como é a vida e atentar nos pormenores. De repente dou por mim a fazer estatística no supermercado: quantas pessoas me deixam passar à frente? Descubro que só dão passagem se estiver com mais do que um produto na única mão disponível, quando me mostro atrapalhado, de outra forma ignoram. Já que não existe uma especial sensibilidade dos cidadãos da fila, talvez fosse bom os caixas imporem essa ordem. Mas não o fazem. Porventura o forjassem caso estivesse ainda mais atado, não sei se as múmias se deslocam às compras.
Custa-me um pouco, confesso. Até porque a rua parece-me o sítio perfeito para levar um encontrão involuntário. Mas que fazer? Ficar em casa o dia todo? Não, as paredes engolem-me. Vou jantar com uns amigos, mas não estou sempre confiante. É então que reparo nas pessoas dos abraços e festinhas, mais um detalhe que estou atento. Ui, são demasiadas, jamais sonharia. Consigo dançar moon walk ou computer, mas de forma desajeitada. Não sei se me olham com admiração ou pena, fica a dúvida.
É possível sofrer e ser feliz, só não sei se para sempre. O meu caso é simples e passageiro, tem os dias contados e cura marcada. Mas e aqueles sem esperança? Os pobres ou as pessoas que nascem com uma incapacidade, os velhos abandonados nas camas do hospital ou em casa? Que possibilidades lhes damos nesse seu sofrimento?
Não acordei com o espírito de professor de moral, um impositor de bons costumes. Mas parei uns tempos e, mesmo incapaz, renovei a certeza que sou boa companhia de alguém. Mesmo com dores, faço falta aos meus pais, com quem voltei a viver. Precisei de ajudas como se fosse criança – atar os sapatos ou cortar a carne do prato. Nós somos frágeis, é necessário recordar isso.
Mesmo que parte de mim não funcione, há outra que sim. E é então que vos digo: não arrumem os vossos sofrimentos à pressa. Parem, escutem, olhem. E só depois atravessem. Se há possibilidade boa, então penso que é essa. Sofrer no sofá é que não, há tanto para fazer.
Ter esperança no que me ensina a dor, é sempre bom padecer um pouco dela. Só assim me recentro e caminho.