Parte I
Quando eu era miúda, o cancro não existia. Era ‘a doença má’. ‘O mal’.
Felizmente hoje já se consegue dizer com todas as letras: tenho cancro.
E todos sabem o que é, mas só alguns conseguem mudar de filosofia de vida por causa dele.
Normalmente a maioria das pessoas afasta-se, mas o cancro não é, regra geral, contagioso. Hereditário, sim. Contagioso não.
Que preconceitos esconde ainda esta doença?
Que tira das nossas vidas pessoas queridas que só se voltam a ver no dia do funeral, ou nem isso, sequer? Que medo provoca, que dor acrescenta a quem vive a doença? Os olhares de comiseração que é necessário suportar, as palavras engasgadas, as perguntas sobre o avanço ou recuo, as idas solitárias às consultas de oncologia, que por serem tão frequentes se tornam banais para quem tem que as fazer?
Delicadamente, esquartejam-se galinhas para os tempos de convalescença inicial :
Cutting up a whole chicken e mais no assunto das facas e da carne que não se come.
Vocês, os saudáveis, já pensaram nisso?
Demora-se por vezes muito tempo a morrer.
A inércia devagar. As mãos.
As mãos devagar demoram muito tempo nesta inércia.
Morre-se devagar. Primeiro as mãos.
As mãos para a frente. A segurar o mal. A barriga que cresce tal qual uma gravidez utópica. E que se segura com as mãos para acalmar dores.
As mãos para a frente, o grito atrás.
A indiferença é a morte e
não é outra coisa
senão o modo como se vive.
Mais um ataque em Gaza.
No Afeganistão.
Aquele jovem americano que se suicidou com um tiro de pistola russa
que herdara de seu pai
e que só ontem foi chorado em Portugal,
numa pequena sala de Lisboa,
na parte velha da cidade.
Nós estamos cá, lá, entre o grito, o choro. Não estávamos em Gaza.
Nem no Afeganistão.
Nem em lado nenhum.
Demora-se muito tempo a aperceber que não é bem vida,
esta morte.
Põe-se as mãos para diante. Protege-se o útero.
Como se fosse só mais um jogo de trava-trava. E já se fala da doença, como se fosse uma coisa que não mói.
As mãos enxutas levantadas ao céu.
Amar mais um nascer nascer do dia.
Lembrarmo-nos da boca aberta.
Não era espanto. Não era admiração.
Era fome.
O primeiro broche de uma vida morta, da morte viva.
Amar aquele nascer do dia, aquele novo dia.
De rastos. É assim que se sai dos hospitais. Ficar de longe a ver se vem alguém atrás de nós, mas nada.
Não vem ninguém para nos segurar a mão e dizer que vai ficar tudo bem. Alguém que não tenha medo de agarrar as mãos de quem as tem lívidas de horror.
Um senhor desconhecido pergunta se está tudo bem.
O pânico, o abandono, o sentimento de desespero deviam estar bem visíveis nas caras de todos quantos atravessam aquelas ruas ainda vivos. Os corredores claros a cheirar a morte.
Sentir vergonha, sentir-se inútil e correr como nunca.
Correr sem destino. Atravessar a marginal, próximo de sofrer um atropelamento , mas não se querer saber.
Só querer sair dali.
Sentindo um ardor imenso no peito.
Ouvir barulho.
Querer que todos se calem. Querer que o mar pare de fazer barulho, que as pessoas desapareçam, que os carros parem.
Tudo parecer tão rápido e não se conseguir pensar nem sentir.
Só ouvir barulho e não querer. Continuar a correr até chegar ao fim da estrada, ao fim da luz, ao fim da vida.
O que dói mais nesses momentos é a percepção de que que afinal se está consciente.
Pensar que se aquilo tivesse acontecido já, todos se iriam lembrar de nós como nós nos lembramos de toda a gente.
Todos iam relembrar virtudes.
E sim. É tão egoísta, mas só se quer o silêncio em momentos de abandono.
E agora
o silêncio é tudo o que existe.
Parte II
Falemos de cancro e da tristeza que o envolve e da felicidade nas pequenas palavras.
E eu estou feliz, porque sendo, o meu, um caso banal , tenho 90% de hipóteses de ficar curada. Mesmo sabendo que me posso encaixar nos 10% perfeitamente. Não me interessa. A minha felicidade vai perdurar. Estou em paz. Aceito o que se passou, entendo o que se vai passar e o que ainda tenho de caminhar. Mas sei que, aqueles médicos, enfermeiros e auxiliares, são todos uma benção para mim. Afirmo, completamente consciente do que digo, e por experiência não tão recente, que são os melhores seres humanos que conheci até hoje. Não me venham dizer que são obrigados a sê-lo. Porque não são. Também vos consigo dar nomes de instituições e profissionais que nem deviam ter iniciado o curso, ou aberto portas por serem extremamente incompetentes e burros. No meu sítio só conheço uma maneira de ser atendida: da melhor maneira possível. Merecem tudo. posso continuar com o meu problema a vida toda, desde que eu seja atendida ali, com eles, eu vou estar segura e confiante. E não há sensação melhor do que sentir que farão de tudo para salvar a tua vida, sem nunca pedir nada em troca, nem esperar por isso. A verdade, é que já me salvaram várias vezes a vida, e sei que continuarão a dar o seu melhor. Será de longe, sempre o melhor exemplo de profissionalismo vs humanidade que algum dia conseguirei dar. Infelizmente, acho que só passando pelas coisas, é que damos valor.
Quando estamos dentro do olho do furacão é que se consegue falar com clareza, distanciamento e emoção.
Nota: quando falo em vida, refiro-me não só à saúde física, mas também a mental, que por acaso, considero mais importante.
Nota 2: não, saúde mental não tem nada a ver com maluquinhos, neste sentido. Tem a ver com a forma como encararas os problemas e como se enfrentam.
A minha família e alguns amigos já sabem falar de cancro novamente.