Não há melhor forma de perceber os tempos sociais, políticos ou económicos do que boa arte. A arte só tem impacto e só se torna universal se representa um momento no tempo e o deixa cristalizado para a imortalidade. O que se passa então no campo do retrato do feminino (sobretudo no cinema e na televisão) nestes tempos do Me Too e de um questionar intenso da sexualidade? A resposta é que se passa muito e o que se passa é extraordinariamente interessante, não linear ou simplista.
Comecemos pelo notável The Wife, filme protagonizado por Glenn Close. Como metáfora feminista, o filme diz-nos muito sobre a forma como das mulheres ainda se espera que sejam discretas e fiquem na sombra, enquanto os homens são ensinados a celebrar o sucesso, mesmo aquele que não é deles. A personagem de Close (Joan Castleman) é a mulher de um novelista (Joe Castleman) que está prestes a receber o Prémio Nobel da Literatura. Acontece porém que Joe não é o gigante literário que aparenta ser, na realidade o génio da família é Joan (que tinha tentado uma carreira literária na juventude para se ver bloqueada por uma série de editores sexistas). A vida dela resume-se agora a sorrir em eventos publicitários para o marido e em lembrar-lhe quando tomar a medicação. A atribuição do prémio Nobel começa a perturbar este equilíbrio falso e a despertar o desejo de reconhecimento em Joan. O agradecimento público de Joe (que Joan tinha pedido expressamente para não ser feito) desperta a fúria interior, adormecida durante décadas.
Close dá-nos provavelmente a melhor performance da sua vida e considerando que esta é a mesma actriz que nos deu Atracção Fatal, Ligações Perigosas, Sunset Boulevard e Damages é dizer algo. Todo o filme é conduzido pela calma, subtileza, auto-controlo quase possuído, da personagem de Close. Ela é uma mulher entre a submissão total ao marido e a raiva, entre a esperança e o niilismo, uma forma indelével, indecifrável de feminismo. É também um filme sobre o poder da escrita. Quando Close diz que “Não há nada mais perigoso do que um escritor cujos sentimentos foram magoados” ela está não só a antecipar a reviravolta final no filme mas também o poder absoluto da escrita, da palavra quando não silenciada.
Outro grande fime no feminino que chega neste Outono é The Children Act com Emma Thompson. O filme é realizado por Richard Eyre e adapta o livro de Ian McEwan (um dos autores britânicos mais cinematizados de sempre). Emma Thompson personifica Fiona Maye, uma juíza brilhante, que se vê envolvida num caso de um rapaz, menor de idade, que está a morrer porque os pais (Testemunhas de Jeová) recusam uma transfusão de sangue. A trama central do filme em si é do mais ressonante possível no Reino Unido onde ainda recentemente (no caso Alfie Evans) houve um extenso debate público sobre se os tribunais devem, em casos terminais, ter a última palavra no destino de pacientes menores de idade. Para além deste tema central, a personagem de Emma Thompson lida com o colapso do seu casamento com Jack (interpretado por Stanley Tucci).
Mas o feminino de Emma Thompson não é o mesmo de Glenn Close. Fionna Maye é decidida, determinada e acima de tudo racional. Para ela a pressão da carreira no casamento é algo inevitável e nem confrontada com a saída do marido de casa ela se desculpa pelas opções profissionais que tomou. O verdadeiro dilema, que Emma Thompson representa brilhantemente neste filme, é como enfrentar (e sobretudo compreender) a irracionalidade religiosa dos pais do doente, quando todo o seu mundo de leis e justiça se baseia na racionalidade, nas regras, na exactidão, na responsabilidade moral. É esse confronto de ideias que faz o filme pulsar, que desvia Fionna do curso habitual (ela visita o rapaz no hospital e desenvolve afectos inesperados). O filme é tambem um olhar muito inteligente sobre a Justiça britânica (que é diferente da americana, se bem que em largo modo, mãe dos princípios base da lei americana): vemos aqui como funcionam os tribunais nos bastidores, incluíndo todo o pessoal auxiliar – por exemplo, o notário Nigel Pauling é uma personagem que só poderia aparecer no sistema legal britânico.
Uma das estreias mais esperadas deste Outono é claro Cold War (vencedor do prémio de melhor realizador no último Festival de Cannes). Embora à superfície seja um filme (em fotografia a preto e branco devastadoramente bela) sobre a vida na Cortina de Ferro da Europa do pós-guerra, na realidade é uma história de amor e sobretudo o retrato de Zula (Jonna Kulig), uma mulher enigmática. Ela entra na vida do cantor de folk Wiktor na Polónia de 1949 e arrebata-o, mesmo depois de lhe dizer que matou o próprio pai (“Ele confundiu-me com a minha mãe e eu decidi usar uma faca para lhe mostrar a diferença”). A fotografia e a música do filme completam a atmosfera da relação entre Zula e Wiktor de forma brilhante: tal como a história central, flutuam constantemente entre a liberdade e o encarceramento, do Rock Around The Clock do Bill Haley até aos temas melancólicos polacos.
O feminino deste filme não é submisso como o de Glenn Close ou pragmático e adquirido como o de Emma Thompson: ele é radical, brutal, sedutor, imprevisível – Zula torna-se uma das estrelas da banda de Wiktor, namora com ele, ao mesmo tempo que o espia para os serviços secretos. Ela é tanto a rapariga polaca pura como a decadente chanteuse parisiense, de vítima a vitoriosa, numa viagem de emoções alucinantes que Kulig interpreta com extraordinária destreza. Kulig já foi comparada à grande Jeanne Moreau mas a sua inteligência e sensualidade dura lembram-me mais uma Lea Seydoux. No fundo, Zula como personagem é quase uma predecessora da linha que vai do feminismo punk ao feminismo do Me Too.
Acabamos com outra interpretação do feminino, mas que vai muito além de ser só isso: o Bodyguard, a série de drama televisivo britânica, produzida pela BBC, escrita por Jed Mercurio e com distribuição mundial já assegurada pela Netflix. A série em seis partes centra-se na personagem do guarda-costas David Budd (Richard Madden), um veterano da guerra no Afeganistão, heróico mas volátil (ele volta da guerra com sindrome pós-traumático) que é destacado para proteger uma ambiciosa Ministra da Administração Interna, Julia Montague (Keeley Hawes). Julia representa tudo o que David detesta: ela é uma defensora de vigilância mais apertada do Estado a indivíduos suspeitos de terrorismo e no passado foi uma das mais vocais apoiantes da guerra no Afeganistão. No entanto, há pouco tempo para divergências: logo apartir do primeiro minuto a série lança-nos num vortex em que colidem política, terrorismo, doenças mentais, sexo (David desenvolve um affair com Julia), serviços secretos, polícia.
A personagem mais ambígua é Julia. Ela é uma mulher feroz, de carreira, mas ao mesmo tempo perseguida, que usa David mas ao mesmo tempo é usada por ele, constantemente sujeita às turbulências da Administração Interna num país destabilizado pelo terrorismo (a própria primeira-ministra britânica, Theresa May, declarou que viu o primeiro episódio mas não conseguiu ver mais por ser “próximo e real demais”). Esta não é a história tradicional do guarda-costas protector e da mulher frágil: David pode ser o protector mas é Julia que inicia (e fá-lo com a frase já clássica “Eu não sou a Rainha. Tu tens a autorização para me tocares”). Ele é o objecto sexual, ela a predadora.
Sem desvendar mais (porque esta história vive de voltas e reviravoltas), a BBC conseguiu um êxito colossal: o Bodyguard tornou-se a série dramática mais vista na televisão britânica desde 2002 (só o episódio de estreia teve 10.4 milhões de espectadores) e um sucesso com o grupo demográfico dos 16 aos 34 anos de idade (que famosamente não vê canais terrestres, assim reza o mito). De repente, o país todo fala da série e sobretudo consome a série como se fazia antes da era Netflix: os episódios são vistos às nove da noite de cada domingo e na segunda-feira seguinte partilham-se todas as teorias sobre o que vai acontecer a seguir no café, no autocarro, no emprego, no barbeiro. A destreza no argumento, nas interpretações, explicam um pouco do fenómeno. Mas há algo mais profundamente contemporâneo: a reversão dos papéis sexuais, a incerteza da era dos ataques terroristas e uma nostalgia pelo funcionamento da política britânica na época pré-Brexit. É um cocktail poderosíssimo que mostra que a televisão terrestre não está morta, só precisa é de boas ideias.
Quatro mulheres, quatro personagens completamente diferentes, quatro versões do que é ser e viver no feminino. Mas sobretudo quatro peças de arte (dramática) soberbas. Para ver, guardar e rever.