A Venezuela é para além de uma fonte imensa de petróleo e de Misses Mundo com frases cliché sobre a paz no mundo, a segunda maior produtora mundial de telenovelas, a seguir ao Brasil. As telenovelas venezuelanas distinguem-se porque são normalmente o grau extremo de lamechice, sempre com a cena clássica em que o vilão declara No fue mi culpa, se bem que toda a audiência saiba quem esteve por detrás de toda a trama que gerou o caos fatal. Pois bem, a Venezuela de 2018 está no seu momento total de No fue mi culpa em que todos sabem quem está por detrás de um dos maiores desastres humanos do século XXI.
Recuemos um pouco no tempo. A Venezuela foi sempre um país turbulento: famosamente o seu povo foi dos primeiros a declarar independência do Império Espanhol em 1811 ao que seguiu, num só século, a integração na Colômbia, revoluções e uma série de governos regionais locais (ou caudillos) que sucessivamente dominaram o país, sem criarem propriamente uma cultura democrática ou lei e ordem. Em 1958 chegou uma democracia oficial mas muito frágil que nunca vingou verdadeiramente: verdadeiras guerras civis eram moeda comum, culminando em duas tentativas de golpe de Estado em 1992 e na deposição do Presidente Carlos Andrés Pérez em 1993 por desvio de fundos públicos. Apesar deste ambiente de fundo que faz o PREC parecer um conto de fadas o país funcionava de uma forma razoável: ainda em 1989 tinha um dos rendimentos per capita mais altos da América Latina, se bem que terrivelmente distribuido. Uma elite pequena mas extraordinariamente rica baseada em Caracas controlava o dinheiro do petróleo e o resto do país (incluindo milhares de emigrantes portugueses, maioritariamente da Madeira) desenvicilhava-se.
1998 foi o ano em que tudo mudou para pior quando o crescente colapso de confiança nos partidos existentes levou à eleicao de Hugo Chávez e ao início da chamada Revolução Boliviana, na essência um movimento populista de extrema-esquerda. Inteiros sectores económicos foram nacionalizados, milhares de propriedades e terrenos expropriados, os preços fixos e controlados, sufocando qualquer réstia de iniciativa privada e de investimento estrangeiro. À morte de Chavéz em 2013 seguiu-se Nicolas Maduro e a “rua” explodiu. Apartir de 2014 a Venezuela entrou num período de três anos de protestos maciços, resultando em mais de 500 mortos e na prisão de todas as figuras da oposição ao regime.
A corrupção continuou a aumentar e a companhia petrolífera nacional (propriedade do Estado claro) tornou-se uma platforma descarada de desvio de fundos para a elite do regime, levando à queda em metade da produção de petróleo local desde 2014. A crescente asfixia democrática chegou a um novo patamar em 2016-7 quando o Presidente Maduro declarou que os partidos da oposição não poderiam tomar parte nas eleições presidenciais de 2018 e ao mesmo tempo concentrou em si próprio todos os poderes legislativos e executivos. Maduro foi reeleito claro, num voto que todos os observadores internacionais consideraram fraudulento. A Venezuela vive na prática sob um regime ditatorial-militar.
Os últimos meses agravaram ainda mais o que já é uma situação desesperada para a população local. Segundo os observadores das Nações Unidas, cerca de 30% do povo venezuelano não tem acesso a comida básica e come restos do lixo para sobreviver. Nas prisões do país é moeda corrente prisioneiros matarem outros prisioneiros para terem alguma carne para se alimentarem. Não há medicamentos básicos nas farmácias nem nos hospitais. A inflação pode ultrapassar mais de um milhão por cento este ano. A economia contraiu mais de um terço desde 2013, a maior queda a nível mundial. As cidades, mesmo Caracas, têm regularmente cortes totais de energia e de água que duram não horas, mas semanas.
O que era uma situação contida ao país está a alastrar aos países vizinhos. Dos mais de três milhões de venezuelanos que já fugiram do país, dois milhões e meio escolheram a vizinha Colômbia, colocando uma pressão imensa nas estradas, hospitais e infraestruturas de habitação colombianas. A fuga pela fronteira para o Brasil também está a aumentar de dia para dia e levou a cenas pouco edificantes para os nossos primos brasileiros, quando um grupo de emigrantes venezuelanos foi recebido pelos locais à pancada e apedrejamento (a situação económica no Brasil também está longe de recomendável, mas não chegou ao extremo venezuelano e não justifica esta barbaridade).
Como resposta a este descalabro social, económico e humanitário total, Maduro anunciou esta semana um paquetazo rojo, ou seja um pacote de medidas de salvação. Entre elas conta-se a adopção de uma nova moeda que tira cinco zeros ao antigo bolívar (que já nao vale praticamente nada), uma desvalorização maciça, um aumento exponencial no preço do petróleo local e uma subida no salário mínimo de 3000% (que de pouco vai valer considerando que a inflação já está em seis zeros). A acompanhar este anúncio, Maduro repetiu os clichés de sempre dos populistas de extrema-esquerda: a culpa do que está a acontecer na Venezuela é do “imperialismo” americano e de forças que declararam “guerra económica” ao país. No entanto, temperou esse populismo de caserna com o reconhecimento oficial, pela primeira vez, que a hiper-inflação venezuelana é causada pelo endividamento colossal necessário para financiar o déficit do Estado (que vai exceder os 30% este ano).
O plano de Maduro tem pouca probabilidade de funcionar. A nova moeda venezuelana vai ser alinhada com o petro, uma nova moeda virtual que tem por detrás o valor das reservas de petróleo do país, um arranjo em que ninguém confia. Não há igualmente confiança nenhuma na capacidade do Estado em controlar o déficit quando cerca de 85% das empresas nacionais estão na bancarrota e os gastos do funcionalismo público são exponenciais. A Venezuela nem sequer tem um banco central independente que possa assegurar uma execução correcta da política financeira e orçamental: o banco central funciona sobre ordens directas de Maduro.
Espera-se portanto um agravar da hemorregia de pessoas para os países vizinhos, uma degradação ainda maior das condições sociais e até potencialmente uma guerra civil. Do lado internacional não há a mínima vontade de intervir neste vespeiro. Nem Trump se quer envolver numa zona que agora pouco importa à América (muito menos dependente do petróleo estrangeiro do que há vinte anos), nem outras potencias têm o mínimo apetite em actuarem como salvadoras. A Venezula servia quando era cartaz de propaganda para um “socialismo” indefinível, como quando o indiscritível José Sócrates se babava todo por vender mini computadores para o regime do senhor Chávez. Agora que o país se converteu num embaraço para os esquerdistas mais extremos ninguém quer sequer ouvir falar do que por lá se passa.
A Venezuela é uma lição sobre o inferno a que a fixação ideológica de extrema-esquerda (e extrema-direita noutros casos) e a debilidade institucional podem levar. Na fantasia ideológica de Chávez e camaradas esta ia ser uma caminhada gloriosa para a “igualdade social e a independência dos totalitarismos capitalistas”. Em vez disso é uma caminhada deprimente para os bancos alimentares, para a fuga ou para a vala comum dos mortos. Sim, já nem sequer há enterros condignos na maior parte da Venezuela por falta de dinheiro. Se isto é o sonho socialista nem quero pensar no que será o pesadelo.