Decidi escrever acerca de uma rainha. Como resumir uma vida cheia de luz, de superação, talento e poder sem cair no cliché do obituário elogioso carregado de informações inconsequentes?
Opto por contar a história maravilhosa de Aretha Franklin em quatro músicas que vos convido a ouvir ao longo da leitura. Sempre com a certeza de que o que vão ouvir são mais do que meras canções: verdadeiros hinos de uma comunidade sofredora e de toda uma geração que lutou pelos direitos humanos, pela paz, pela aceitação da cultura afro-americana como parte integrante e fundamental da história dos Estados Unidos da América. São testemunhos que ultrapassam a lógica do tempo e que hoje são ouvidos por milhares de pessoas nos quatro cantos do mundo. Este foi o grande feito de Aretha Franklin: levar o Gospel e o Soul a todos; transpor fronteiras. Eliminar cabal e gentilmente o preconceito através do poder da música.
R.E.S.P.E.C.T-
A primeira é talvez a mais conhecida. Serve, aqui, para aferir o talento de Aretha. Enquanto pesquisava aprendi que Respect era, na verdade, uma canção de Ottis Reading. Curiosa, fui ouvir a versão original. Peço-vos que o façam. Ottis Reading é, como sabemos, genial. Mas a diferença entre as duas versões é esmagadora. Ottis foi espectacularmente eclipsado pela versão explosiva de Aretha. Não pela diferença de talento, mas porque a versão posterior vem do fundo da alma. Foi sempre assim que Aretha foi ganhando o seu lugar no panorama musical americano. Punha paz e fúria, sofrimento e alegria no timbre, nas colocações de voz, nos arranjos e nas actuações. O sucesso de Respect foi não só produto do talento, mas também da experiência pessoal de quem viveu frequentemente atormentada por homens maltratadores, viciados e financeiramente oportunistas. Era um padrão repetido na altura, infelizmente comum a Aretha, Tina, Billie, Ella, entre tantas outras. Ser mulher afro-americana na América dos anos 50/60 era sinónimo de dupla discriminação. E se Billie cantava “Well, I’d rather my man would hit me/ Than follow him to jump up and quit me/ Ain’t nobody’s business if I do”, já Aretha decide soltar um grito de revolta. Respect não é um pedido, é uma ordem. Tão forte e tão intemporal. Aretha Franklin, não inventando nada, deu, com a sua versão de Respect, (ainda mais) alma ao Soul.
I Say a Little Prayer –
Aretha sempre foi uma activista discreta. Não por falta de crença ou de força, mas porque cedo entendeu que às mulheres não era concedido o direito de comprar determinadas guerras. Dizia, há dias, Al Sharpton na CNN, que Aretha sempre se comportou em concordância com aquilo que cantava. A diva de Detroit era sempre discreta mas estava, à sua maneira, sempre em luta pela sua comunidade. Financiou a causa, reuniu com as maiores figuras do movimento anti-segregação, chegando a fazer parte – ao lado de figuras como Harry Belafonte e Sidney Poitier – do tour de angariação de fundos para a Conferência de Líderes Cristãos de Martin Luther King. Em todos os outros momentos, posicionava-se como ícone do Soul e reforçava o estilo musical não como nicho, mas como tendência mainstream, parte fundamental do incrível espectro musical americano. Em 68 faz questão de cantar no funeral de King. Passado uma semana da morte do líder, edita a sua versão de “I Say a Little Prayer”. Era para ele, a canção. Podia ter escolhido outra letra, mais rebelde ou agressiva, mais em linha com o enorme golpe que a comunidade afro-americana sentiu quando MLK foi assassinado. Em vez disso, fez como mais tarde Michelle Obama nos disse para fazermos: “When They Go Low, Go High”. No fundo, Aretha Franklin sabia que a melhor forma de pôr cobro à lógica de acção-reacção era através da música e da reafirmação dos valores fundadores dos Estados Unidos. Valores esses assentes na crença em Deus, na tolerância, no respeito pela paz e na concessão de igualdade de oportunidades, independentemente de raça, cor ou proveniência.
Amazing Grace –
Que tipo de artista regressa às origens no auge da sua carreira? Aretha Franklin, que nunca delas se afastou. Chegada a 72 e carregada de sucesso, canções em todos os tops e discos de ouro, Aretha decide lançar um álbum gospel. Para além de obra-prima, Amazing Grace é homenagem à sua família, à sua comunidade, aos que a levaram ao colo, lhe apuraram o dom e promoveram a fé. É o álbum da menina nascida em Memphis, Tennessee, filha do Pastor itenerante C.L. Franklin . É o disco da adolescente que viaja com pai e vai cantando nas igrejas, privando com a realeza do gospel (Mahalia Jackson, Dinah Washington, a família Staples, entre outros), ouvindo os sermões e rezando sempre. Tem a gratidão da menina que segue o êxodo da comunidade negra do sul para a nova cidade da indústria e da oportunidade: Detroit. É obra da estrela gospel que, chegada à cidade, faz da Igreja erguida pelo pai – a New Bethel Baptist Church – a sua segunda casa até ao fim dos seus dias.
Amazing Grace é lançado em 1972, ano de eleições. Questão ultrapassada mas nunca resolvida, a discussão acerca dos direitos da comunidade afro-americana dá lugar à discussão sobre o futuro da Guerra do Vietname. É o ano da vitória de Nixon, de feridos e mortos de guerra, de imagens cada vez mais sangrentas que agora entram nos lares à hora de jantar, ao vivo e a cores. Amazing Grace é um bálsamo, uma oração urgente e sentida no seio de uma sociedade polarizada e perdida. Rapidamente rende dupla platina e um Emmy à cantora de Detroit. É hoje o álbum gospel gravado ao vivo mais vendido de sempre.
(You make me feel like) a natural Woman –
A história desta canção é uma história de irmandade. Da autoria da também incrível Carole King – judia, branca, amiga pessoal de Aretha – A Natural Woman é um marco indelével na história da música. A modéstia com que King fala do processo de composição e produção é enternecedora. Como refere King, a versão original chega às mãos de Aretha, que, como sempre, lhe imprime uma carga dramática, profunda, vivida. O resultado é uma espectacular ode à liberdade e ao amor. Um ultrapassar de feridas passadas. Natural Woman é a sequência de Respect, um convite ao empoderamento feminino, ao amor em liberdade, à emancipação e resolução pessoal.
Em 2015, Aretha, dona de si e do seu sucesso, sobe ao palco para uma participação especial no espectáculo de homenagem a Carole King. Faz questão de entrar de casaco de peles, que dramaticamente despe a meio da canção, não fosse ela uma verdadeira diva. Para grande espanto da homenageada, senta-se ao piano, coisa que já não fazia há anos. Canta como nunca, para fazer justiça à incrível dádiva de King. Cheia de confiança, faz o que muitos consideram ser a melhor performance da sua vida, olhando nos olhos da homenageada e de um Obama que não consegue conter as lágrimas.
Maravilhosos tempos, estes. Em que um Presidente abria as portas da Casa Branca a novos artistas, provenientes não só, mas também, da vibrante, por demasiado tempo ignorada comunidade musical afro-americana.
Aretha teve o reconhecimento de um Presidente que pensava para além da bafienta politiquice, que sabia do poder transformador da música. Outros, para já, não terão a mesma sorte.
Aretha Louise Franklin morreu dia 18 de agosto em Detroit, rodeada da família que amava e dos amigos que a acompanharam durante esse penoso calvário chamado cancro do pâncreas. O seu legado está mais vivo do que nunca. A força, a espiritualidade e a alegria, permanecem, agora imortalizadas em vídeos e canções. Que seja sempre celebrada a incrível vida da eterna Rainha do Soul.