As Mitford, Le Pen, Bannon, Kellyanne Conway e a promoção diletante dos fascismos (ou pior)

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Numa daquelas correntes do facebook, publiquei a capa de um livro, sem fazer referências ao conteúdo do livro, apesar de ter dito umas coisas sobre as circunstâncias em que o li.

O livro era The Mitford Girls, de Mary S. Lovell, e fiz mal em não me alongar sobre ele. É que se tem discutido tanto os fascismos, à volta do convite a Marine Le Pen para a Webb Summit, que o livro ganha pertinência. (Os bons livros são assim. Volta e meia têm lá plasmados os problemas que os humanos recorrentemente, em círculos, criam.) As irmãs Mitford, bem reais apesar das vidas parecerem copiadas da ficção, que o livro biografa têm lá no meio duas fascistas empedernidas: Diana Mosley (née Mitford) e Unity Mitford. A primeira foi, no segundo casamento de ambos, casada décadas com Oswald Mosley, o líder da British Union of Fascists e, mais tarde, apenas British Union. Casaram na Alemanha poucos anos antes da Segunda Guerra Mundial, patrocinados por Hitler e Goebbels, de quem Diana era amiga e visita frequente. Unity (com o perturbante segundo nome de Valkyrie) era uma fanática nazi de boa cepa, apaixonada por Hitler (de quem era íntima, provavelmente não sexualmente), tendo-se tentado suicidar em Munique (mudara-se há muito para a Alemanha para estar perto do seu ídolo) no dia em que Chamberlain declarou guerra à Alemanha. Sobreviveu e foi Hitler himself que pagou as despesas do hospital e o regresso de Unity a Inglaterra.

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Mary S. Lovell conta a história da família Mitford (que também teve a comunista Deborah e a socialista caviar Nancy Mitford), um caso emblemático de como a política pode destruir uma família. Irmãs desavindas. O casamento dos pais Mitford desfez-se: a mãe tornou-se fascista e admiradora de Hitler e o marido não conseguia tolerar tal opção política. Mas Mary S. Lovell faz mais. Não apenas mostra paixões políticas no feminino dos anos 30 e 40 do século passado – algo relevante para um site como este – mas também toda a benevolência com que a boa sociedade tolerou as ideias nazis e até as considerou, durante muito tempo, tema aceitável de conversa nos dinner parties.

Os – as – Mitford faziam parte da aristocracia britânica. Churchill era um primo afastado. Randolph Churchill, o filho do político, teve uma tremenda paixão pela famosamente bonita Diana que, por sua vez, casou em primeiras núpcias com um dos bestialmente ricos Guiness (sim, da cerveja). Nancy fazia parte do grupo icónico da alta sociedade britânica que ficou conhecido com Bright Young Things (BYT – têm direito a sigla e tudo). Viviam no smart set, portanto. O set que ia em turismo todos os anos a Nuremberg assistir aos comícios nazis – antes da estadia anual da praxe no Lido de Veneza.

Antes do nazismo ser o nazismo, era algo respeitável, uma opinião como as outras, e somos democratas e aceitamos todas as opiniões, certo? Churchill era um doido varrido obcecado com Hitler, coitado, devia ser do whisky logo de manhã, que as pessoas normais conseguiam ver como, afinal, Hitler trouxe coisas boas à Alemanha e merecia elogios: parou a hiper inflação, recuperou economicamente o país (usando políticas Keynesianas, de resto), criou os Volkswagon e inventou as autoestradas. Nada é a preto e branco, pois não? A conversar é que a gente se entende.

Bom, não quero comparar Marine Le Pen a Hitler – ela não matou milhões de pessoas em câmaras de gás nem provocou nenhuma guerra – mas é impossível não registar as semelhanças entre os populismos nacionalistas de Le Pen ou Trump com o nazismo e os fascismos dos anos 20, 30 e 40 do século XX. Numa deliciosa entrevista de António Ferro a Hitler que o DN republicou (o Hanfstaengl lá referido faz também aparição no livro de Lovell), às tantas Hitler afirma que quer a Alemanha para os alemães. Em que é que é diferente da retórica de Trump e dos apoiantes trumpistas da Fox News (e de outros lados) que reclamam palavra por palavra a América para os americanos? Só com grande vontade de negar a realidade – desde logo porque começa a ser estudado – se finge que os apoiantes de Trump e Le Pen não têm uma visão do mundo que vai além das necessidades de segurança interna que se têm de adaptar com a imigração (legal e ilegal). É uma ideologia que efetivamente considera os outros povos e culturas inferiores ao homem branco europeu. Isto, caríssimos, é de herdeiros de Hitler.

Posto isto cabe-nos – e porque temos a sorte de podermos olhar para a história do século XX e refletir – não fazermos novamente o papel de idiotas úteis que não vêem os perigos de ideologias nazis ou proto-nazis. Pior: de, a coberto da defesa da liberdade de expressão, acabarmos a promover fascismos e proto-nazismos. Esta discussão precisa de ser feita – por questões de arrumação de assuntos, não darei os meus palpites neste texto, fica para depois. Mas adianto algumas colheradas. Convém, antes de tudo, ser criterioso e cuidadoso na hora de ponderar dar palco a quem defende ideologias iníquas. Por isso o convite a Marine Le Pen foi tão despropositado e irresponsável.

Mas li, com supresa, Ricardo Costa defender que Steve Bannon seria um bom convidado para a Webb Summit. Como diz? Steve Bannon, para mim, é ideologicamente mais tóxico que Le Pen, porque junta ao mau pacote francês um programa político misógino que apesar de tudo está ausente na Frente Nacional. Afinal a criatura americana quer criar um movimento que contrarie o Me Too. Está muito interessado em manter a impunidade dos abusos e das agressões sexuais e, sobretudo, em retirar às mulheres a sua voz na hora de os denunciar. Como é que se considera aceitável um orador destes na Webb Summit? Não entendo.

Mais. Steve Bannon é um zero. Não conta para nada. Na verdade sempre contou pouco. Falhou em tudo na vida menos em dinamizar um site destinado a pessoas que precisavam que lhes dissessem quem e o quê odiar. Na Casa Branca teve um percurso patético – até, levado pela soberba, atacar o filho do seu patrão e terminar despedido e insultado no twitter por Trump. Criou uma ordem de restrição de entrada de muçulmanos tão mal feita que foi inutilizada depressa (depois foi refeita por quem sabe e o supremo tribunal aceita esta última), não sem antes criar caos nos aeroportos de todo o mundo. Alapou-se ao grupo da segurança nacional que tem acesso à Situation Room – para ser depressa corrido de lá. Agora é um moinho de vento a clamar.

Para quê dar palco a este inseto esmagado? Para o ressuscitar? Não é de agora que a comunicação social dá excessiva importância a este ideólogo de pacotilha. No ano passado, ainda Bannon estava na Casa Branca, li um texto de um jornal sério – o NY Times – que dava Bannon como travando uma batalha com o Papa Francisco pela definição da Igreja atual. (Houve reincidências no tema noutros jornais sérios.) Ri horas. Supor que um sabe-se-lá-quem pudesse vergar o avassalador poder (espiritual, simbólico, político and so on) do Papa Francisco é de ir às lágrimas. Mas isto foi escrito como se fosse a sério.

Sim, o poder de Steve Bannon vem mais do poder que os jornalistas lhe têm dado do que do que obteve pela sua atuação. Pretender que uma criatura destas seja um orador decente para uma grande conferência é que não vislumbro razões. Só se for aquele hábito arreigado que considera que um homem, mesmo medíocre e falhado e odioso, merece ser ouvido com atenção. Antes Le Pen que Bannon, sem dúvida. Pelo menos tem concretizações reais políticas próprias de que se orgulhar. O convite a Marine Le Pen pode argumentar-se que se torna aconselhável (não compro, mas está bem), pelo sucesso político. Convidar Steve Bannon é mesmo só ressuscitar um morto odioso e dar palco porque sim a ideias perigosas. O que é ainda mais irresponsável e desapropriado que convidar Le Pen. Há que ter cuidado em não promover produtos tóxicos só por curiosidade intelectual mórbida. Ou porque somos tão liberais e tolerantes que damos oxigénio para os proto-nazis em processo de sufoco dizerem coisas. Não vale a pena revivermos o papel ingénuo da aristocracia europeia nos anos 1930.

Quer-se convidar um maluquinho americano? Porque não se pensa em Kellyanne Conway, muito mais influente e bem sucedida que Bannon? No género mentirosa compulsiva, claro. Perigosíssima – até por ser mais articulada e nuanced (também pela situação tragico-cómica do seu casamento) -, batidíssima na desinformação, mas tremendamente mais interessante. Ah, mas quem é que se vai lembrar de convidar uma mulher poderosa quando há ao lado o homem falhado para ouvir?

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Mãe de dois rapazes e feminista (das duas características conclui o leitor inteligente que não quer exterminar os homens da face da Terra). Licenciou-se em Economia ao engano, é empresária, mas depois encarreirou para os Estudos Orientais, com pendor para a China. É cronista do Público e escreve ocasionalmente ensaios sobre livros e leituras na Ler. Já foi blogger e cronista do Observador e Diário Económico. Considera Lisboa (onde nasceu e vive) a cidade mais bonita do mundo, mas alimenta devaneios com Londres e Hong Kong.

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