A minha memória esboroa-se a cada dia.
Tento guardar registos, normalmente fotográficos do que faço ou sinto e vejo.
Quero recordar até as gretas das tábuas de madeira do chão, onde o pó flutua quando o sol ilumina a sala.
Quando não me deixam fotografar, (muitos amigos não gostam, porque sou insistente) quebra-se na forma de os amar a linha que nos une e torna-se mais frágil a filigrana dos dias.
No futuro não nos vamos lembrar. Por demência ou por velhice. Por demência e por velhice.
E não haverá ninguém para nos recordar que naquela tarde fomos ao café da esquina antes de dar um mergulho na piscina coberta e toda nossa.
Que o prego estava um bocadinho duro, mas tínhamos tanta fome que o achámos delicioso.
As garrafas que rebentam no congelador por existirem pessoas surdas. Os poemas que se ouvem em livrarias antigas, com som de fundo que me leva de volta ao Brasil.
Não nos vamos lembrar de que estavam todos os amigos juntos.
Do vinho que bebemos e da cumplicidade que nos atrai como um animal esfomeado. Naquela noite. Em que a lua se via redonda no céu a puxar dos galões por estar tão cheia, em época de Boom. De que no dia anterior até se eclipsou para dar espaço à Princesa para chegar à maioridade.
É impossível para mim ler para trás sem as imagens que me acompanham permanentemente.
Por ter esta bengala, não solidifico as transmissões sinápticas, que acontecem, mas sempre em câmara lenta.
Se não fossem as imagens, como me iria lembrar da ginja no Estádio, das florestas antes dos fogos, do fado adormecido nas ruas de Alfama nas noites que se acabam no Tejo, das pessoas com quem durmo. Sim, porque durmo sempre. Sempre que não tenho insónias.
Não posso inventar um sítio onde as crianças desaparecem e o futuro está já ali.
Tenho que o registar.
Faz parte do meu ADN desde sempre.
Gosto de fotografar até as pessoas que não gostam de mim, para me lembrar das mentiras e dos falsos sorrisos. Dos olhares que me imaginam acéfala, mas aos quais falta o brilho nobre da verdade.
De recordar sempre que há quem nos ache fúteis e pessoas luminosas que gostam de nós e nos deixam a flutuar em nenúfares esvoaçantes.
Quero lembrar-me de que não preciso que tomem conta de mim todos os dias todo o dia. Mas quando preciso, essa preocupação é como uma droga a passar-nos nas veias. Quero recordações desses dias.
Registo aqueles com quem estabeleço uma relação de cumplicidade inquebrável. De intimidade tão grande, que nem as imagens conseguem captar, mas que apesar dos protestos se vão registando levemente.
Afinal, se vou perder a memória…. Não há riscos a correr.
Até lá, A felicidade é chegar ao fim do dia, cozinhar, conversar, escolher o vinho.
É encontrar o silêncio onírico.
Tenho por vezes um redemoinho no cérebro e não consigo fixar mentalmente o que os meus olhos vêm. Como se a viagem tivesse sido tão esgotante ao ponto do meu espírito se extinguir. Indo ao limite de tudo o que é suportável e depois – desprendendo-se, desprendendo-se…
Uma mescla doentia, doce e putrefacta do coração humano.
Tento despertar. Talvez todos se sentissem assim a dada altura, quando se reconhecia a profundidade da vida e as emoções que existem para além da importância de cada uma das imagens….
(eu era só uma pequena intérprete a desempenhar o meu papel na história das outras pessoas)
A domesticidade é misturada com a morte e a violência esbarra com o inesperado todos os dias, por isso, porque não fotografar a vida?
Tudo é assim, fluido. Não é firme, não é uma escritura; é uma oscilação que se presta à dúvida assumindo a forma do que quer que seja em que se verte.
O que existe no passado, permanece inalterado.
No entanto, as pessoas precipitam-se sobre aquilo que lhes é dado como um coração em carne viva e devoram-no.
Deixem-me fotografar.
( sou só uma pequena intérprete a desempenhar o seu papel na história de outras pessoas)