“Felizmente que a noite sai/Ainda bem que há névoa por aí/Estou contente se a luz se esvai/E uma sombra invade este lugar”, GNR, Morte ao Sol (Valsa dos Detectives, 1989)
Nos tempos clássicos da Antiguidade (ou seja, quando se gravavam cassette mixes para se ouvir no Walkman e ainda só haviam dois ou três canais de televisão) antecipava-se a chegada das férias de Verão com prazer. O Verão seria aquela época mágica ou quase mítica à volta da qual cada país desenvolvia uma série de tradições: ténis, piqueniques e regatas no Reino Unido; fogueiras à meia-noite em ilhas desertas na Suécia; Vespas e limoncello na costa italiana ou a rota das praias ou das festas de província em Portugal. O living era easy e uma brisa soprava sempre, como num anúncio lamechas ao dourado fin de siècle. KAS Laranja, o teu mundo é jovem.
Como as coisas mudaram. A maior parte das pessoas racionais (também há as completamente loucas e, às vezes, deliciosas por isso) aproximam o Verão com trepidação. Primeiro porque já não se consegue desligar mentalmente como na era pré-digital. Onde antes havia só que pensar em um ou dois livros inteligentes, uma toalha de praia e que gelado escolher, as coisas tornaram-se de uma complexidade inexplicável nos dias que correm no que diz respeito às duas ou três semanas em que não estamos a trabalhar.
As férias desta idade requerem extensa documentação no Facebook e Instagram (até mesmo quando não se quer caír nessa rota, uma pessoa tem de declarar pelo menos umas 365 vezes no Facebook que se vai ausentar do Facebook, sob pena de decapitação pela brigada das redes sociais). Só o uso do Instagram requer ou um extensivo curso de aprendizagem sobre fotógrafos sonantes como Aarons Slim, Mário Testino, Helmut Newton, se se tem pretensões a retratar as férias de forma top ou três meses pré-ferias de pura tortura estética (ginásios, dietas à base de humus e kale, cirurgia dentária e plástica) se a fantasia for a de retratar um corpo e uma vida perfeita em que cada segundo de vida é o orgasmo para bater todos os orgasmos.
Depois há o facto de que enquanto antes era fácil separar-se do trabalho durante o período de férias de Verão, agora com a parafrenália electrónica que carregamos atrás essa separação deixou de existir. Há sempre o Zé Maria do escritório que manda uma mensagem do estilo “Olhe não queria incomodar nas suas férias (umm), portanto só analise estes documentos quando voltar…” e logo surge o medo de estarmos a perder algo, o fear of missing out (FOMO), mais uma variação da incrivelmente complicada cultura de escritório moderna. O Andy Warhol tinha de sair todas as noites devido ao FOMO. Nós temos de estar sempre ligados online graças ao nosso FOMO virtual. Se perdemos o mais pequeno tweet ou post no Facebook com a opinião de um semi-conhecido sobre a nova polémica com o José Cid sentimos que estamos condenados a uma vida inútil. Morte por ausência social virtual, nada pior no século XXI.
Depois há claro o tempo ou, como se diz em expressão sonante as “alterações climáticas”. Este Verão tem sido a prova disso. Todo o hemisfério norte está a passar desde já há dois meses pela vaga de calor e seca mais extensas desde há 70 anos. Não se pode passar tempo a tratar dos jardins em Inglaterra porque os jardins estão mais secos que uma duna no Dubai. Ir acampar na floresta na Suécia ou na Noruega já não pode ser um acto espontâneo, tal tem sido a voracidade de incêndios em terras escandinavas. A agricultura na Europa de Leste está tão dizimada com a seca que já não há batatas nos menus da Polónia. Animais tiveram de ser abatidos a eito devido à vaga de temperaturas extremamente elevadas no Canadá e no Japão houve geishas a colapsar de golpe de calor antes sequer de poderem dizer haiku.
Sobretudo não se pode falar do “tempo” como antes. Falar do tempo era até há uns anos o grande nivelador social em Inglaterra. Uma conversa sobre o “tempo” nunca era só sobre o “tempo”: como todas as conversas em Inglaterra era de facto sobre tudo menos sobre o tópico aparente de discussão. Se se dizia ao John no elevador do escritório “Lovely day, yes?” e o John respondia “Yes, but it could be better”, o que o John nos estava a dizer era que ele estava cansado ou deprimido com algo. Agora que o sol quente, abrasador, brilha todos os dias no céu inglês já não se pode ter esta conversa porque o tópico seria sempre o mesmo. A beleza da conversa sobre o tempo em Inglaterra era que as variações do tempo serviam para medir o pulso às variações dos humores humanos e estabelecer um vínculo, nem que superficial. Pelo menos no meu escritório já ninguém fala de tempo. Só de vez em quando um lamento: “quando é que acham que vamos ter alguma chuva?” e pronto, o tópico volta a desaparecer.
Para os que ficam nas cidades a trabalhar durante a sauna em que Julho e Agosto se converteram, costumava ao menos haver o consolo de menos trânsito, menos crianças, menos ruído. Saír à rua era um prazer. Agora converteu-se num dilema existencial. O que vestir para ir trabalhar quando às 8 da manhã já estão 30 graus? Podem considerar-se calções como apropriados num escritório? Será muito Baywatch? Como evitar aquela rota de metro que mais parece um forno vivo em Londres? O que comer com este tempo?
Para alem disso, há o confronto visual e físico quase permanente com pessoas que aparentemente não teem as mesmas dúvidas existenciais em época de vaga de calor. É a senhora super-obesa no autocarro que decidiu que uma micro-mini saia de cabedal seria ideal para a viagem da manhã; é o rapazinho que vai para o campo de futebol e que não toma banho há uma semana; é o homem barrigudo que decidiu que não usar camisa na rua era uma boa decisão. Claro que o reverso também é verdade e podem encontrar-se espécimes sexys e ver-se mais desses espécimes do que se veria em época de Inverno, mas a probabilidade de uma pessoa se cruzar na rua com um éspecime tipo Daniel Craig é a mesma que ganhar a lotaria: um num milhão.
À medida que a exaustão das vagas de calor ganha peso, começam as recriminações. Que devia fazer-se mais para adaptarmos as cidades ao calor crescente. Que não se entende porque é que não há mais ar condicionado nos hospitais. Porque é que não teem mais kiwis neste supermercado? Porque é que o vizinho rega o jardim todos os dias sabendo que se está numa situação de seca? Porque é que o governo grego não demite uma ministra/o para dar o exemplo nos incêndios como tão bem fez o governo português em 2017 (lembram-se daquela demissão tão, mas tão espontânea, da tão sofrida Constança Urbano de Sousa, não se lembram?). Que a culpa é do Trump ou dos chineses ou até do Pedro Passos Coelho. Que o global warming acontece por causa de demasiados aerossóis nos anos 80, sobretudo pelas fãs dos Duran Duran. A culpa é disto e daquilo. Segue-se o já não posso esperar pelo Outono, ou pela chuva, ou pelo Pai Natal para nos tirarem disto.
Normalmente pouco se faz de concreto para além das recriminações, basta ver os registos dos vários países e registar que, para além da Escandinávia e de mais um ou dois, poucos teem cumprido os acordos de diminuição de níveis de gases perigosos emitidos para a atmosfera. E claro nem entremos pela esfera política: ainda há uma parte substancial da direita mais arcaica nos Estados Unidos que acha esta coisa do aquecimento global é uma mentira ou uma vasta conspiração da “elite liberal”.
Entretanto os recordes continuam a ser batidos. Londres com 36 graus, vaga de hospitalizações por desidratação no Japão, 80 mortos em incêndios na Grécia, colapso de redes eléctricas na Hungria pelo calor. E assim continuará todos os anos, porque infelizmente, nós todos e os nossos antecessores danificámos este planeta para além do reparável. Agora já só resta declarar morte ao Sol. Ou acreditar que ainda é possível mudar.