Portugal banal

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Fotografia da Isabel Santiago Henriques

 

Não é coisa pouca: quarenta e quatro anos depois, Portugal tem eleições livres, um Parlamento plural, imprensa livre, não está em guerra, é membro de pleno direito da maior comunidade política e económica da Europa, não proíbe partidos, não tem exilados, os direitos sociais alargaram-se, os sindicatos são livres, é incontestável o direito à greve, não há censura, não há polícia política. Mas o Portugal democrático é estruturalmente o Portugal dos anos 60 e 70 do Estado Novo. A economia mantém-se essencialmente corporativa, dependente das relações com a política e com o Estado; as corporações mantêm-se inamovíveis e inatacáveis; o Estado Novo banalizou a cultura da cunha e da pequena corrupção, o Estado Democrático aceitou-a e expandiu os horizontes da corrupção, elevando-a aos mais altos patamares.

É possível que a visão dos jornais e a vida da grande Lisboa nos transmita o contrário, mas o País é estruturalmente católico e conservador, não se interessa especialmente pela política, perdeu o interesse pelos partidos e pelos sindicatos (o número de filiados nos partidos rondava os 4%, e o número de trabalhadores do sector privado sindicalizados é de 8%). É certo que os direitos sociais não chegaram a Portugal em 1974 mas, sejamos justos, só a partir dessa altura se começaram a generalizar. Mas mantém-se a percepção de que é o Estado – e não o contribuinte – quem distribui esse dinheiro que aparentemente é de ninguém. A aproximação à Europa também se iniciou antes da Revolução, mas, com justiça, novamente, só em democracia foi possível a integração plena nas comunidades europeias. Portugal, porém, não se apaixonou por elas e tem tido sempre taxas de participação nas eleições para o Parlamento Europeu que não são mais que o sinal da indiferença generalizada. A Europa, lá de fora, é como o Estado, cá dentro. Serve para nos proporcionar riqueza que, sem eles, nunca teríamos.

Existe, por outro lado, um País, mais a norte, que vive da produção, das fábricas, das exportações, e que tem uma relação mais fria com o Estado. Existe, de facto, um País nortenho que desconfia das instituições públicas, que se revê nos laços da comunidade, na sua capacidade de resolver problemas, na paróquia, nos clubes, nos bairros. Mas que também não vê na liberdade um valor absoluto. É, afinal, o País dos baixos salários, que tem, antes das transferências sociais do Estado, mais de 46% de pessoas em risco de pobreza.

É verdade que ninguém pensa tanto em dinheiro como um pobre. Portugal enriqueceu nos anos 60 e 70 e voltou a crescer no final dos anos 80 e na década de 90. Foram períodos de engano e que não alteraram estruturalmente o que somos – podem ter alterado o que fazemos, como fazemos ou o que dizemos, sim, mas não o que somos.

O País do Estado democrático acolheu PS e PSD (aceitando o CDS no clube) como os partidos que lhe assegurariam a estabilidade conservadora, as reformas cautelosas, o rendimento a aumentar, a segurança ou os direitos sociais básicos (escolas, hospitais, tribunais). E esperou deles pouco espalhafato, pouca ideologia e condutas éticas irrepreensíveis. Reconheceu, nalgumas zonas geográficas e sociais, o PCP como garante do conservadorismo social, graças a um discurso virado para as classes trabalhadoras e uma conduta política centrada nas pequenas comunidades (os colectivos) e nos centros de representação de interesses (os sindicatos, hoje com mais palco nas televisões que propriamente junto dos trabalhadores). O País que já existia antes de 1974 está representado nestes partidos. O BE veio responder às necessidades de uma pequena elite urbana. O PAN fez o mesmo, virado para um segmento mais jovem e mais interessado nos cães do Instagram que propriamente na política. E o País está, assim, todo representado em São Bento – talvez com a excepção de uma pequena minoria fascista que, ainda assim, se vai sossegando, aqui e ali, com posições tomadas por cada um dos partidos.

Não existe extrema-direita organizada e com espaço sociológico porque o PCP o ocupou com o discurso da política patriótica, contra a globalização, contra as organizações internacionais, a favor dos trabalhadores e esquecendo o marxismo cultural ou o politicamente correcto. É graças ao PCP que Portugal não tem – e provavelmente não terá – um Trump ou uma Le Pen. Não existe um partido conservador porque o conservadorismo é transversal – vai do CDS ao PCP, faz parte da estrutura social do País, que vive muito bem assim. Não há movimentos alargados a precisar de mais liberdade económica porque o País vive praticamente todo ancorado no Estado e sabe que se um dia deixar de assim ser é possível que se instale o caos.

É por isso que as divagações liberais são, em Portugal, um exercício de intelectuais – ou de quem não tem mais que fazer. São muito interessantes (algumas), mas o País fora desses clubes está-se nas tintas para elas. Os partidos que existem servem este eleitorado perfeitamente. A única coisa de que parece haver saturação (e os dados da abstenção explicam-no) é de que sejam as pessoas de sempre a fazer e discutir política, em primeiro lugar. Em segundo lugar, que a generalidade dos mais novos que vão surgindo cheirem a mais do mesmo. E, em terceiro lugar, que não haja garantias de ética e seriedade no desempenho de altos cargos do Estado (já que no quotidiano a pequena corrupção e a cultura da cunha continuarão inatacáveis). Estes partidos, a caírem, cairão pela saturação que provocaram nas pessoas – não pela ideologia.

O País é o que é, não é o que querem que ele seja. Quem quiser fazer política, à esquerda ou à direita, devia pensar nisto antes de experimentar fazer seja o que for.

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