Hoje o meu filho viu o meu braço com uma marca, porque bati na porta do carro.
Olhou e perguntou-me o que era aquilo. Expliquei.
Passados minutos, voltou a perguntar-me com ar muito sério:
-Mãe, alguém te anda a magoar? Não gosto disso. Diz-me o que se passa.
Não te lembras da história da Laura? (nome fictício para proteger a identidade da pessoa em questão.) Se precisares de ajuda, diz-me.
-Ninguém me anda a magoar, querido.
A Laura teria uns 34 anos, era casada há 9, com uma criança. Uma vida feliz e normal até aqui. Um dia o marido começou a questioná-la sobre tudo o que fazia, a segui-la, a discutir constantemente, com acessos de raiva e ciúmes, a violência psicológica instalou-se e de repente Laura estava sozinha. A família achava que tinha enlouquecido. O marido era tão boa pessoa…Tão responsável… E adorava a criança: via-se à distância!
(Os agressores são tão bons actores…)
Tornou-se perita em perseguir duas ideias ao mesmo tempo. Ouvia-se a falar, era de facto ela, mas tão amputada pela ausência que mal se reconhecia. A cobardia devia ser punida com algo violento e marcante, pensava. O erro era dela, com certeza.
Mas não trocem dos ridículos, o germe de todos os vícios. A vontade de rir foi substituída pelo desprezo e o desprezo é silencioso.
Quase sempre, para conseguirmos viver em paz connosco, mascaramos de cálculos e de sistemas as nossas impotências ou fraquezas: isso satisfaz aquela parte que, por assim dizer, é espectadora da outra.
Há na esperança alguma coisa de duvidoso. E depois da primeira sessão de violência física, Laura decidiu mudar de vida. Procurou casa, mudou-se às escondidas, claro. E para outra cidade.
Não sem antes a criança assistir ao segundo momento de violência física.
Os únicos horizontes que os seus olhos viam eram já só uma fotografia. A imagem tornava-se agora mais impressiva do que na realidade retratada. Tratava-se do rosto de um homem cuja fealdade provinha não dos traços fisionómicos, mas da alma.
Passaram-se alguns meses em que tudo acalmou um pouco. Depois da Primavera veio o Verão maldito. No ar, imóvel, ele atingiu-a em rajadas. Tirou-lhe a força e a esperança que subtil ou pesada se insinuava até à medula dos ossos.
Sim. O animal estava bem vivo. Ele sabia. Ele estava certo. A razão de Laura anotava as relações de causa e a vida é assim mesmo: tem saltos, contrastes, mudanças bruscas, repetições.
Estava habituada a esperar pelos três golpes!
O primeiro golpe fere.
Ao segundo perguntamo-nos para quê passar pelo mesmo, se para avaliarmos o que suportamos já bastou o primeiro. E ao terceiro golpe, por mais terrível que seja, ficamos apalermados, quase felizes, sem perguntarmos mais nada, e pomos de lado a vida que se serve de nós porque precisa de repetir-se mil vezes antes de acertar com o final feito, mas não podia impedi-la de estremecer.
Laura pediu ajuda. Laura tentou evitar o desastre, mas acabou como tantas outras numa cama de hospital, paralisada não só de medo.
Para quando leis que protejam todas as Lauras? Juízes que sejam sensíveis ao perigo a que uma mulher se expõe quando há um agressor raivoso por perto?
É preciso mais. Exigir mais.
O meu filho sabe que a violência não se pode usar. Há homens que não conseguem habituar-se às mulheres. Algumas são lindas. Sorriem e há uma espécie de suavidade na sua pele, nos seus gestos, nos seus sorrisos e risos. Nos costumes, na maneira como servem à mesa e na cama…
Há homens que não suportam o desejo.
Escondem a paixão na vida. Não se pode saber o que há no seu sangue, no seu coração, nos seus nervos quando se sentem delírios emocionais.
Laura levará anos a libertar-se daquilo a que antes chamava sentimentos, essa escória quente.