O lado esquecido

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Fotografia da Isabel Santiago Henriques

Quem diz preta pode perfeitamente dizer branca, filipina, ucraniana, o raio. Quem quiser conhecer o mundo que o rodeia, o país que está para lá da Avenida de Roma, tem de fazer duas coisas: andar de transportes públicos suburbanos, de preferência entre as cinco e as oito da manhã, e entrar em hipermercados ou centros comerciais dos arredores ao domingo.

Quem aspirou a alcatifa do escritório quando ainda dormíamos? Quem limpou as sanitas? Quem limpou o pó à secretária? Há na cidade um vrrruuuummm silencioso todas as madrugadas. Ninguém o ouve, ninguém dá por ele, ninguém quer saber. São os aspiradores e os afagadores de chão. Os primeiros autocarros suburbanos da manhã vão cheios de mulheres, a tagarelar alto entre si. Apanham, depois, o primeiro comboio ou o primeiro barco para Lisboa e vão fazer o que ninguém quer e o que ninguém vê. Muitas passam depois os dias a recolher tabuleiros nos centros comerciais. Invisíveis, mudas, surdas. Ninguém as vê, ninguém lhes fala, ninguém lhes ouve uma palavra. Pelo caminho deixaram os filhos ao Deus dará, talvez vão à escola, talvez não. Fazem horas extraordinárias. Têm três, quatro empregos, sete dias por semana. Não terão, na vida inteira, uma progressão na carreira. Não podem aspirar a mais que aquilo, porque não o terão. O mais alto que podem sonhar é passar a trabalhar apenas para senhores com dinheiro, sem mais patrões. Andam entre os corredores dos hotéis, os gabinetes das empresas, as cozinhas e as praças dos centros comerciais. Quinze horas de trabalho diário, uma hora de transportes para lá, outra para casa. Noites curtas. Muitas delas vítimas de violência dos maridos, dos filhos, até. No primeiro autocarro da manhã, nas poucas vezes que nele andei, nunca lhes ouvi uma queixa ou uma ambição.

Talvez não seja preciso recorrer ao primeiro autocarro da madrugada. Há tantos milhares de pessoas naquele lufa-lufa diário, entre transportes, um emprego intolerável, um salário de merda, creches, escolas, as modernices caras a que julgam ter acesso apesar de não terem dinheiro para as comprar, o crédito ao consumo, a dívida ao banco.

Sobre os hipermercados, Agustina explicou, em ‘Antes do Degelo’, tudo em poucas linhas: o que os supermercados, palácios dos pobres, fazem é dar a ilusão de que o sol quando nasce é para todos. É só ilusão, de facto. São milhões de portugueses no lado B do Portugal mediático, no ângulo morto da intelectualidade, no dark side das notícias. Diz que também há por lá imensas mulheres.

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32 anos, casado, pai de uma filha. Advogado e ex-assessor no XIX Governo. Colaborei, enquanto jurista, na redacção do livro “O Inimigo em Casa – Dar Voz aos Silêncios da Violência Doméstica” e escrevi o artigo “A Liberdade não está a passar por aqui” para o livro “Troika Ano II – Uma visão de 66 cidadãos”. Escrevo no Observador sobre o sistema político e a justiça.

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