Padre. Poeta. Português

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A Madeira é berço de grandes portugueses. E eu estou para falar sobre este grande português há algum tempo. Enganem-se os que acham que vou falar do Ronaldo. Esse, todos nós conhecemos. Há outro grande português, nascido na Madeira, que se resguarda na sombra fértil da discrição. 

Tenho adiado esta crónica, talvez por saber que o caminho de José Tolentino de Mendonça ainda agora está a começar. Mas ontem enchi-me de alegria com a sua chamada ao Vaticano para ocupar o lugar de arquivista e bibliotecário da Santa Sé. Em jeito de celebração, hoje é o dia em que escrevo o que anda para ser escrito há muito tempo. 

Vou buscar os livros que tenho cá em casa e salta-me à vista a capa do livro “O Tesouro Escondido”, com a seguinte frase do Cardeal Giancarlo Ravasi: 

 “Quando Deus concedeu a fé a José Tolentino de Mendonça, concedeu-lhe, também a capacidade de cantá-la.” 

Não podia estar mais de acordo. Tolentino de Mendonça, Padre, poeta e pensador, busca a beleza da poesia e o rigor das palavras em tudo aquilo que faz. Sei que tudo isto parece exagero, devaneio da (comunidade) beata, mas não o é. O génio de Tolentino ultrapassa as portas muitas vezes fechadas da Igreja para ser celebrado por artistas, poetas, padres e paroquianos. Não se fica pelos estáticos livros ou pelas repetidas cerimónias religiosas. Este é o Padre que, em entrevista à RTP, escolhe a palavra amigo como palavra da sua vida. 

  “Ao lado do teu amigo, nenhum caminho será longo”. 

É com o seu amigo António Lobo Antunes que entra de mão dada no palco da Visão Fest, numa conversa que guardarei para sempre no coração. Foi um tratado sobre a amizade, uma conversa de dois homens cheios de ternura um pelo outro. Dizia Lobo Antunes que tinha imensa inveja da fé do seu amigo. Quem não tem?, pensei eu com os meus botões. A fé de Tolentino tem a grande virtude de ser despida de certezas. “A pior coisa para um crente é estar saciado”. A fé de Tolentino é para crentes e não-crentes porque explora os limites da experiência humana. Porque se debruça sobre sentimentos muitas vezes abafados em nós e castrados pela Igreja mais conservadora. Sempre com as palavras certas e bonitas, Tolentino ensina-nos, no seu “Pai-Nosso que estais na Terra” que: 

 “A experiência de fé deve conduzir-nos ao reconhecimento de que Deus é Deus e que isso comporta um literal afundamento numa realidade radicalmente outra. A experiência constrói-se no intransigente, desconcertante e ardente oxímoro, que é a sua figura por excelência: a fé é sede que dessenta, fome que sacia, vazio que enche de plenitude, escuridão que brilha. É na pobreza orante, de mãos estendidas e vazias, que a podemos tocar e viver.” 

A proposta de caminho de Tolentino, ao não virar a cara ao sofrimento, não é fácil nem linear. Vai-nos ao âmago, destapa-nos as frustrações, as melancolias e as angústias. O seu novo livro “O Elogio da Sede”, que foi guião do retiro espiritual de Francisco e sua Cúria Romana, é uma rejeição da fé fácil. É um convite ao auto-conhecimento. 

 “Existe uma violência no mundo e em nós próprios que provém da sede, do medo da sede, do pânico que as condições de sobrevivência não estejam garantidas. Viramo-nos contra os outros, litigamos, achamo-nos enganados, queremos voltar ao passado, apressamo-nos a encontrar um bode expiatório. A sede destapa uma agressividade que nos surpreende, mas que, se formos honestos, está dentro de nós. Claro que não nos é grato reconhecermo-nos nessa imagem, mas ela oferece-nos pelo menos a possibilidade de nos tornarmos mais conscientes”. 

Só reconhecendo a escuridão conseguimos ver a luz. É neste retrato tão fiel que entendemos o que nos trava. E só a partir da aceitação da inevitabilidade do seu contrário que entendemos a magnitude e a beleza do Amor.

José Tolentino de Mendonça vai voar, porque um homem assim não pode ter poiso fixo ou ser guardado na redoma portuguesa, na igreja pequena ou nos círculos do costume. Leva consigo o poeta, o pensador, o vizinho que encontrava amiúde no Largo do Rato. Sempre simpático, sempre terreno, sempre brilhante. “Perdemos o Padre Tolentino”, diz a minha mãe. Deixámo-lo ser mais, diria eu. O seu legado já cá canta e só vai aumentar. Partilhar pátria com um homem assim deverá encher-nos de orgulho. Continuamos a ter o santo-vivo português e teremos cada vez mais um santo vivido, permeável a novas amizades, novos horizontes, renovados caminhos e inspirações.  

Graças a Deus pelo nosso Padre Tolentino. 

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Teresa Morais tem 35 anos, é jurista, tradutora e activista. Depois de viver em São Paulo e em Londres, voltou, há dois anos, à Lisboa que a viu nascer. Gosta de biografias, boas revistas, boas séries, bons políticos e bons amigos. Ouve música de todos os estilos, a toda a hora, em qualquer lugar. Está no Capital Magazine por acreditar ser esta a hora de falar de causas e de fazer melhor política em Portugal.

1 COMENTÁRIO

  1. “Ao lado do teu amigo,nenhum caminho será longo. São muitas dessas experiências vamos tendo ao longo da vida.A visão do Snr Padre Tolentino é para além de tudo “O universo que eu gostaria poder partilhar.Obrigada Teresa por nós ter mostrado brilhantemente esse lado do Snr Padre Tolentino. Só podemos rezar para N. Senhor o ajudar.

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