Futebol e outros jogos, made in Britain para o mundo

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“O futebol é um jogo simples tornado complicado por pessoas que pouco sabem.” Bill Shankly

Milhões de espectadores pelo mundo fora seguem o Mundial de Futebol (organizado este ano pela Rússia). Do Alaska ao Sri Lanka, as regras do jogo são conhecidas, os melhores jogadores são adorados e o merchandising circula fazendo milhões em lucros (as camisolas do Ronaldo ou do Messi, os cachecóis do Manchester United, as chávenas do Real Madrid).

Igualmente, daqui a uma semana começa o torneio máximo do ténis – Wimbledon – com milhares de espectadores em tardes lânguidas na relva, entre morangos e Pimm’s, a seguir a arte de Federer, Djokovic e Murray (e milhões em patrocínios, direitos de transmissão e em prémios para os vencedores). No fim de Julho segue-se o Open de Golfe, em Setembro o Ryder Cup e a época de jogos de rugby a partir de Novembro. O que têm em comum estes jogos de bola em campo verde? Todos eles foram inventados no Reino Unido, no auge do Império Britânico no século XIX, ou pelo menos a sua versão moderna e com as regras que ainda hoje existem foi criada nesta ilha bem verde.

Concentremo-nos apenas no desporto-rei, o futebol. Há relatos de jogos com bola esférica, semelhantes ao futebol, na China e na Pérsia de há mais de três mil anos, mas o primeiro registo escrito de um jogo em que uma bola era chutada é de 1280 e encontra-se na biblioteca pública de Ashington, em Inglaterra. Não era o jogo bem educado de hoje em dia: nessa primeira partida os jogadores entraram em campo não só com uma bola mas também com punhais nas mãos, resultando num lindo total de oito mortos e seis feridos.

Esta barbaridade foi moeda corrente até 1840 (os primitivos hospitais da época chegaram a ter uma ala especial para feridos em jogos), altura em que a Inglaterra foi o primeiro país do mundo a desenvolver regras específicas para permitir às exclusivas escolas públicas competirem entre si em torneios de futebol. A primeira tentativa foram as regras de Cambridge (criadas em 1848) e outras se seguiram até se chegar a um conjunto único de regras em 1863, quando a Associação de Futebol Inglesa foi a primeira a ser formada no mundo. São essas regras que ainda prevalecem, grosso modo, hoje em dia.

Várias coisas foram notáveis no desenvolvimento do futebol moderno (e doutros jogos made in Britain). Até ao início do século XIX, a alta sociedade britânica só considerava como desportos a equitação, a caça e a esgrima. O povo camponês entretinha-se com coisas tão edificantes como execuções públicas ou jogos com bolas feitas de bexigas de porcos. Foi a partir do fim das Guerras Napoleónicas (1815) que os alunos das escolas da aristocracia e alta burguesia inglesa começaram a praticar o futebol (e o rugby e o ténis) contra a permissão das próprias escolas. Ao mesmo tempo, a classe operária inglesa, formada pela Revolução Industrial, também praticava esses jogos, principalmente nos horários livres que foi conquistando. No fundo, tanto a regulamentação como a massificação do futebol em Inglaterra aconteceu num momento histórico em que havia mais tempo livre devido à industrialização e onde o operariado começa a tornar-se uma classe política. Nada melhor para a burguesia industrial do que controlar, a partir da criação de regras, um jogo que a maioria proletária praticava. Milhares de equipas foram formadas nas fábricas do país e os próprios operários eram os jogadores, com os jogos geralmente aos sábados à tarde (tradição existente até hoje na Liga Inglesa). Os domingos eram dia de missa.

A partir daí os britânicos encarregaram-se de expandir o futebol pelo mundo todo, não de forma centralizada ou patrocinada pelo Estado, mas como sempre fizeram: através do comércio. Foi assim que dois comerciantes ingleses introduziram o futebol moderno em França, logo em 1864, com um simples jogo na alfândega francesa para ocupar tempo enquanto esperavam por um carregamento de mercadorias de Dover. A chegada do futebol a Portugal foi igualmente espontânea: o primeiro sítio onde se jogou futebol em território português foi no Largo da Achada, na freguesia da Camacha, na Madeira. O desporto foi introduzido na Madeira por Harry Winton, um inglês que passava os Verões na quinta do pai na pérola do Atlântico. O jogo decorreu com uma bola trazida de Inglaterra (depois de explicadas as regras aos nativos) e a partir daí expandiu-se a toda a ilha e mais tarde a Portugal Continental. O mesmo se passou no Brasil (que viria a tornar-se talvez a nação mais louca pela modalidade): marinheiros e trabalhadores operários ingleses trouxeram as regras e o jogo para o Rio de Janeiro e São Paulo por volta de 1870. O jogo captou tanto as elites como as classes operárias brasileiras e difundiu-se mais rapidamente que o samba.

É nesse momento de domínio global britânico que surgem as grandes rivalidades entre as diferentes equipas das cidades do Reino Unido, que ainda existem hoje: entre o Manchester City e o Manchester United, entre o Glasgow Celtic e o Glasgow Rangers, entre o Arsenal e o Chelsea. Razões comunitárias, culturais e até religiosas levaram à progressiva identificação das populações com os clubes de futebol locais, levando a que o historiador inglês Eric Hobsbawn chamasse ao futebol a “religião laica da classe operária”.

Como compreender o poder de sedução que o futebol moderno exerceu pelo mundo fora a partir desses finais do século XIX? Afinal de contas, era um fenómeno especificamente britânico na origem. A razão está no impacto que a Revolução Industrial teve nas estruturas sociais e políticas globais, transformando o que até aí era um planeta de Estados-nações isolados num verdadeiro sistema de comércio e trocas global. A extraordinária expansão das cidades a partir da segunda metade do século XIX, trouxe uma multiplicação acelerada da classe trabalhadora bem como gigantescas ondas migratórias (em Paris e São Paulo, por exemplo). Nas metrópoles ninguém tinha raízes ou tradições, todos vinham de partes diferentes do território nacional ou do mundo. Na busca de novos traços de identidade individual e colectiva, de novas bases emocionais de coesão que substituíssem as comunidades de origem, o futebol igualizou e harmonizou. No fundo, o futebol fez com que todos ganhassem: tanto o povo como a oligarquia política que o utilizou para domesticar a sociedade. Não é por acaso que, para Salazar, tudo se resumia a Fátima, Fado e Futebol, naqueles tristes cinquenta anos de ditadura e isolamento.

O Império Britânico acabou de largo modo com o fim da I Guerra Mundial em 1914 e oficialmente com a independência da Índia em 1947. Mas o Reino Unido não deixou de continuar a ter um papel crucial no desenvolvimento do futebol e de outros desportos na segunda metade do século XX e neste novo milénio. Foi na Grã-Bretanha que se criou a primeira indústria e mercado profissional do futebol a partir dos anos 60. Os clubes tornaram-se vastas máquinas de lucros e merchandising onde tudo se compra e vende: a t-shirt do jogador, as memórias do treinador, os direitos de transmissão dos jogos e claro os próprios jogadores, a preços exorbitantes, tal qual como acções no mercado bolsista. Aliás é curioso observar como a palavra “mercado” não faz impressão nenhuma às alminhas mais estatistas quando aplicada ao mundo do futebol. No que toca ao futebol somos todos neo-liberais, Hayeks e Friedmans da bola, unidos.

Neste processo de comercialização que se alastrou ao mundo todo, há quem lamente a perca do espírito amador e ingénuo do futebol original. Mas esta é uma mudança que mais uma vez reflecte a evolução da sociedade: agora na Quarta Revolução Industrial, a do digital. Ter-se Ronaldo ou Messi como hologramas e jogos transmitidos pela Amazon é a melhor imagem deste início de milénio. Não interessa o facto de que a vasta maioria dos jogadores na Liga Inglesa nem sequer são nacionais ingleses ou que os proprietários dos maiores clubes são russos, tailandeses ou árabes. O que interessa é a dimensão do mercado e o valor da oportunidade: os ingleses contam com cinco dos dez clubes mais valiosos do mundo, incluindo o Manchester United, o mais valioso de todos (propriedade de americanos e com acções cotadas na Bolsa de Singapura).

Apesar disto, o “desporto-rei” continua a atrair milhões aos estádios e aos ecrãs. Uma simples lesão num tendão de um jogador pode comover mais uma nação do que um desastre natural ou humanitário. Reputações e amizades podem ser feitas ou desfeitas em segundos com base em opiniões ou declarações futebolísticas. Uma vitória numa final de um Campeonato Europeu ou no Mundial nunca é apenas a vitória de uma “equipa”. É imediatamente transformada numa vitória do “país”, da “geração”, até do “governo” ou da “Presidência” desse país, como se todos, para além dos atletas em campo e da sua equipa técnica, tivessem uma responsabilidade directa e essencial no resultado final.

O íman quase que primal de atração a vinte e dois homens num campo verde atrás de uma bola esférica continua intacto. Devemos agradecer aos ingleses a criação de um elo colectivo nesta época de fragmentação total. E para os que não gostam de futebol há sempre a elegância do ténis ou a camaradagem do rugby, também eles made in Britain.

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Ricardo Arruda, 43, estudou Ciências da Comunicacão em Lisboa e fez um MBA em Finanças nos Estados Unidos. Vive há mais de vinte anos entre os Estados Unidos e o Reino Unido e foi gestor em companhias financeiras tão variadas como a AXA, Merrill Lynch e AVIVA. Nos tempos livres gosta de fotografia, viajar, musica e ler livros de História. Continua a adiar a escrita do primeiro livro mas até lá vai ser o nosso correspondente em terras de Sua Majestade.

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