Tabu

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 Há algumas semanas, tentámos encarar o assunto tabu. A propósito da eutanásia, percorremos, enquanto sociedade, um caminho algo atribulado de reflexão e suposta discussão de propostas. Pessoalmente, foi um caminho emotivo, algo doloroso, de contraditório e contradição. Acerca não só do tipo de vida e morte que quero ter, mas, acima de tudo, acerca do meu posicionamento face ao sofrimento dos outros, face aos seus direitos, liberdades e garantias. 

A conclusão a que cheguei, guardo-a para mim e para os meus. A minha opinião interessa pouco para este artigo, que pretende debruçar-se sobre um assunto maior: o sofrimento. 

Constatei, mais uma vez, que vivemos tempos perigosos. Generalizações, demonizações, falta de tolerância e de franqueza: no geral, foi um espectáculo triste, com algumas excepções. A título de exemplo, enumerar, a favor, o bom artigo da Margarida Balseiro Lopes – a quem, infelizmente, não foi dada a palavra na AR – e, contra, a estruturada intervenção de Margarida Mano na Assembleia da República.

Pior do que assistir à reiterada instrumentalização do assunto, foi constatar que a classe política, à semelhança do povo português, tem uma péssima relação com a palavra sofrimento. Este desconforto, esta falta de coragem, tem consequências nefastas a todos os níveis e faz com que perpetuemos o tabu que historicamente nos persegue. Que é cantado no fado, escrito pelos poetas, belo, a espaços, mas sufocante na maior parte do tempo. Que nos põe em negação perante a conclusão mais do que óbvia: estamos, enquanto sociedade, em sofrimento; doentes; ansiosos; sobre-medicados. Em crise. Com os mesmos de sempre a serem remetidos ao esquecimento: os idosos, os doentes, os mais pobres.  

Sobre os números da saúde mental, dos cuidados paliativos e da sobre-medicação, falarei num futuro próximo. Voltando à discussão da eutanásia, o tema mais importante – o sofrimento – passou entre os pingos da chuva, disfarçado por jargões, suavizado com meias-verdades. 

Do lado favorável à eutanásia, a incapacidade de utilizar a dita palavra, que traria pragmatismo e qualidade à discussão. Em vez de morte sem sofrimento, falou-se de morte digna. Associou-se, assim, o sofrimento à indignidade. Ignoraram-se factos mais do que certos da vida:  Nem todo o o sofrimento é final. O sofrimento não é nojento nem é indigno. 

A perspectiva asséptica da eutanásia não lhe faz favor nenhum, antes pelo contrário. Faltou reconhecer que, a ganhar o sim, a eventual opção pelo sofrimento final seria, igualmente, uma opção digna. Faltou rigor epistemológico. A diferença que uma simples palavra faz! O que a incapacidade de pronunciar essa palavra quer dizer. Não só dos que não a proferiram, mas de todos nós, que preferimos não a ouvir. 

Do outro lado, a tentativa de passar a mensagem de que o sofrimento já não é como antigamente. Que hoje se sofre de forma sofisticada, atenuada. Quase a dar a impressão de que a morte chega agora de fininho, a pedir licença para se anunciar, reverente ao magnífico e impoluto processo evolutivo da medicina. Já não vou falar do cartaz dos velhinhos: recuso a demonização de uma miúda que, bem ou mal, estava a exercer o seu direito cívico. O que não posso  aceitar é a visão romantizada do progresso, que levou Fernando Negrão – líder, recordo, da bancada do maior partido da oposição – a falar de Miguel Torga e dos seus ‘Contos Da Montanha’, afirmando, eloquentemente, que o tipo de sofrimento terminal descrito no livro é coisa de um Portugal agora inexistente, um Portugal antigo, rural, sem emprego, sem recursos, sem instrução.  

É fácil, com argumentos destes, polarizar a questão de forma a ganhar apoiantes.  Não é de estranhar, com argumentos destes, que a discussão tenha sido breve e superficial. 

Contra ou a favor, reconheçamos a existência do sofrimento. Os que sofrem merecem-no. Merecem cuidado com as palavras, compaixão, profundidade. Mereciam ter assistido a uma discussão mais abrangente, mereciam ter tido visitas, mereciam que se tivesse gasto tempo com audiências a médicos, a psicólogos, a  doentes, a familiares, à sociedade civil. Que pena que a classe política se tenha perdido pela rama do assobio para o lado? Que excelente oportunidade teve ela de ser digna, superior às quezílias partidárias, inclusiva, ouvinte, respeitadora. 

A nós cidadãos, cabe-nos exigir a elevação do discurso. A rejeição dos argumentos fáceis. Para que a democracia seja cumprida e a dignidade das instituições preservada. Pelos que sofrem agora e por nós, que um dia, com a morte à porta ou de forma passageira, também havemos de sofrer. 

  

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Teresa Morais tem 35 anos, é jurista, tradutora e activista. Depois de viver em São Paulo e em Londres, voltou, há dois anos, à Lisboa que a viu nascer. Gosta de biografias, boas revistas, boas séries, bons políticos e bons amigos. Ouve música de todos os estilos, a toda a hora, em qualquer lugar. Está no Capital Magazine por acreditar ser esta a hora de falar de causas e de fazer melhor política em Portugal.

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